GARDA

GARDA
J. B. Teixeira – Jornalista

Passei pelo menos duas vezes pelo Lago di Garda, cruzando em estações impróprias seus belos balneários, destinos de muitos não italianos no verão. Por conta de algo que li, sempre associo a região ao trio Nietzsche, Louise Andreas-Salomé e Paul Rée, que por lá andou num triângulo amoroso, real ou suposto. Li, algures, que a russa, tão culta quanto egocêntrica, seduzira tanto o filósofo quanto o poeta, manobrando ambos como quem atiça gatos com um peixe fisgado, que jamais alcançarão, na ponta de um caniço. Nietzsche, pelo menos, tudo indica, só sentiu o cheiro.

Sobre Nietzsche, Rée declarou que nunca conseguira lê-lo, porquanto “rico em espírito e pobre em ideias”. Foi além: “Todos fazem tudo por vaidade, mas a vaidade dele é patológica, irritantemente doentia. Ela o levou a produzir, quando são, grandes obras, de modo normal, já enquanto doente, podendo pensar e escrever com rara frequência, e temendo sobretudo não voltar a fazê-lo nunca mais, a todo custo queria conquistar a fama; Sua vaidade doentia produziu algo doentio, muitas vezes brilhante e belo, mas essencialmente deformado, patológico e demente; não um filosofar, mas sim um delirar!“.

Mas por que raios Garda retornou à memória? Por conta de um anúncio publicado no final do século XIX que encontrei num opúsculo que lista médicos internacionalmente reconhecidos: “Um senhor idoso muito rico, altamente educado, residente em Paris, procura uma senhora com conhecimentos de línguas, também de certa idade, como secretária e chefe de família”.

Transcorria o ano de 1876 e a contratada foi Bertha Kinsky. Tornou-se funcionária de Alfred Nobel, que se declarara idoso aos 43 anos. Um pouco mais tarde Berta casou-se com um austríaco e tornou-se Bertha Suttner, mas se manteve amiga de Nobel até o fim da vida. Divergia de seu empregador, inventor da dinamite, e tornar-se-ia uma pacifista muito ativa. Seu livro mais conhecido é “Abaixo as armas!”.

É voz corrente que Bertha foi responsável pela decisão de Nobel de criar o prêmio da Paz, da qual ela própria seria a vencedora em 1906. Sem favorecimentos: Nobel falecera dez anos antes. Aliás, este empresário já defendia uma visão de dissuasão para evitar guerras: “Minhas fábricas podem por fim às guerras antes de seus Congressos. No dia em que dois exércitos possam aniquilar-se mutuamente em um segundo todas as nações civilizadas, é de esperar, renunciarão à guerra e dispensarão suas tropas”.

Coetâneo de Bertha Suttner, Henry Dunant chegou no norte da Itália em 24 de junho de 1859, um dia depois de uma batalha terrível que envolveu mais de trezentos mil soldados, ao longo de mais de vinte quilômetros, que se atiraram ferozmente uns contra os outros. Franceses, austríacos, lombardos, croatas, húngaros, milaneses, hussardos, argelinos, piemonteses, boêmios, romenos, zuavos, alemães, sardos, tiroleses, …., geraram um banho de sangue nesta batalha da segunda guerra de independência da Itália.

Dunant, tido como o pai da Cruz Vermelha e inspirador das Convenções de Genebra, presenciou a destruição causada pelo combate em que Napoleão III derrotou Francisco José. Dispôs-se a ajudar no cuidado com os feridos e sua tristeza diante daquela brutalidade daria origem ao ótimo “Lembrança de Solferino”: “Por volta do fim do dia, quando as sombras da noite começaram a cobrir esse imenso rio de carnificina, muitos oficiais e soldados franceses foram procurar por todos os cantos companheiros, compatriotas ou amigos. Se eles encontrassem alguém que conhecessem, se ajoelhariam ao seu lado tentando trazê-lo de volta à vida, apertar a sua mão, estancar o sangramento, ou atar o membro quebrado com um lenço. Quantas lágrimas silenciosas foram derramadas naquela noite miserável quando todo o orgulho falso, e mesmo toda a decência humana foram esquecidos!”.

Lembrança de Solferino” é um relato cortante, sem rodeios, sem pieguice, que revela por inteiro a estupidez humana e se alinha entre as grandes obras do gênero, como “Nada de novo no front”, de Erich Maria Remarque, sobre a primeira guerra mundial, que lhe valeria a perseguição do nazismo. Os sanguinários não toleram discursos pacifistas, que desestimulam a índole guerreira e empanam suas bandeiras, gloríolas e medalhas.

O que resgatou Garda das minhas recordações foi o fato de que Solferino dista menos de vinte quilômetros do famoso lago em torno do qual Nietzsche cortejou a narcisista Louise Andreas-Salomé. Tudo leva a crer que ele não conheceu o amor, pelo menos o amor correspondido.

É sempre estranho visitar lugares, ora no silêncio, nos quais os gritos de guerra e as loucuras humanas acompanharam muito sangue derramado. Coisas que o tempo esmaece na lembrança, que migram para o esquecimento da maioria, cuja recordação seria pedagógica para todos os homens. Em Solferino morreram dezenas de milhares, entre os quais generais dos dois lados. Napoleão III e Francisco José estavam nas proximidades. Hoje seus pares comandam à distância e a morte de oficiais de alta patente é quase coisa do passado.

Por fim, certa feita um dos irmãos pediu a Nobel, brincando, que rabiscasse sua autobiografia. Tomou o lápis e o papel que o irmão lhe alcançara e se descreveu como “desprezível meio-homem, sem família e sem realizações, cuja principal virtude é manter as unhas limpas”. Em seu testamento destinou sua fortuna a uma instituição que deveria ser criada para premiar destaques em cinco áreas do pensamento.

Como Nietzsche, não teve filhos, mas seu legado premia a excelência e a premiação que instituiu já adentrou no segundo século de existência. Teve morte solitária, em San Remo.

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