Saudade

“somos anjos de uma asa só e apenas conseguimos voar abraçados.”
Saudade foi a palavra escolhida pelos portugueses para 2020. A estranheza da preferência deixou-me perplexa.
Porém, é a avassaladora revelação do quanto precisamos uns dos outros, do quanto sentimos a falta da presença física, do abraço que talvez nunca tivéssemos valorizado, da liberdade de nos visitarmos, da companhia dos que nos escutam e sabem consolar.
O tempo de confinamento contraria a nossa natureza gregária, a necessidade de convivência.
Quem diria, há um ano, que a incrível força expressiva da palavra saudade seria um dos legados da inquietante pandemia!
Nenhum de nós imaginou viver uma situação destas. Encontrou-nos impreparados e pôs a nu a nossa vulnerabilidade. As habituais práticas de vida e a organização da sociedade revelaram-se inadequadas perante a crise.
Conhecemos o passado, contudo, percebemos hoje que o futuro não será o que esperávamos.
O escritor José Guimarães Rosa afirmou: “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende mais, é a fazer outras maiores perguntas.”
É tempo de questionarmos, de ganharmos uma nova consciência de tudo o que faz parte da comunidade humana a que pertencemos e do planeta que habitamos. Ele não precisa de nós. Porém, a nossa sobrevivência depende, em tudo, do que temos andado a destruir.
A pandemia está também a lembrar-nos de que somos anjos de uma asa só e apenas conseguimos voar abraçados. Precisamos uns dos outros para nos salvarmos.
Esta crise abre-nos dois caminhos. Não deixará ninguém indiferente. Uns seguirão o rumo do desânimo e da tristeza por tudo o que perderam. Outros, espero que seja a maioria, vão saber gerir as aflições e optarão pelo portal da confiança, rompendo com o passado recente, sem contudo o esquecerem, e juntos construirão a ponte para o mundo seguinte.
As grandes crises quase sempre se transformaram em oportunidades de recomeço, em grandes desafios direcionadas para o futuro e numa abertura aos exemplos inspiradores. E por que não um incentivo à leitura dos poetas? Eles são visionários, profetas, os que estão sempre à frente do seu tempo.
Não me vou alongar nas palavras porque este texto está cheio de gratidão pelo facto de estar viva. Está cheio de respeito e de admiração pelos que lutam connosco e ao nosso lado.
Muito do que está a acontecer toca o coração, entra fundo dentro de nós e obriga a uma reflexão.
Partilho o excerto de um texto bíblico de Marcos 4, 35-41. “Surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda, demo-nos conta de estar no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento.”
Os leitores deste jornal têm um nome, um rosto e uma história de vida. Quando escrevo penso em todos: os que conheço e os que vivem no imaginário. Estabeleço um diálogo. Aproximo-os. Sinto a sua presença.
Hoje, em especial, junto às palavras um grande abraço para cada um. E deixo um pedido: por favor, abracem, todos os dias, os que ainda podem abraçar. Que privilégio! Há quem não tenha ninguém.
Maria Leonarda Tavares