Arquivos da natureza
“Saxa loquuntur” é a expressão latina que quer dizer “as pedras falam”. São como que livros onde está escrita a história da Terra.
Esta interessante imagem, que retirei da Exposição de Maura Grimaldi, em Lisboa, de 27/06 a 27/07 de 2024, diz que as pedras, no seu falar de silêncio, revelam a quem as sabe escutar, não só de que foram e como foram feitas e, muitas delas, a respectiva idade.
Com efeito, as pedras, ou seja, as rochas podem ser entendidas como documentos escritos que os geólogos aprendem a ler. No caso particular das rochas sedimentares, as letras dessa escrita são, sobretudo, os seus minerais e os fósseis que muitas delas encerram, há milhões de anos.
Nas outras duas classes de rochas, as magmáticas e as metamórficas, os fósseis, salvo em casos muito especiais e raros, não têm representação.
Fixemo-nos, portanto, nas rochas sedimentares, como as mais importantes neste discurso.
Como constituintes mais peliculares da litosfera, acessíveis à curiosidade dos geólogos, estas constituem um domínio particularmente importante da Geologia e são o fulcro das preocupações da Sedimentologia, uma especialização relativamente recente que se fica a dever aos interesses das grandes empresas petrolíferas.
Armazéns ou arquivos de vultuosa informação, estas rochas têm-nos permitido conhecer grande parte da história da Terra e da vida. Numa linguagem com preocupações de estilo, poder-se-ia dizer que as rochas sedimentares trazem consigo as marcas dos seus progenitores, as das condições ambientais em que foram geradas e, muitas delas, a data do seu nascimento. É, pois, nesta medida que podemos comparar as camadas de rochas sedimentares às páginas de um grande livro onde está escrita essa história.
Em 1941, o físico e cosmólogo ucraniano, naturalizado norte-americano, George Gamow (1904-1968) escreveu:
“O Livro dos Sedimentos, reconstruído pelo esforço de diversas gerações de geólogos, equivale a um extensíssimo documento histórico, ao lado do qual todos os alentados volumes da História da Humanidade não passam de insignificantes opúsculos”.
Se o leitor abarcar os como e os porquês, os quando e os onde da dinâmica inerente aos processos que levam à alteração das rochas em superfície por efeito dos agentes externos, à erosão, ao transporte e à sedimentação, ou seja, à sedimentogénese;
Se interiorizar os principais conceitos sobre os mais variados ambientes de sedimentação (marinho litoral, marinho profundo, fluvial, estuarino, deltaico, glaciário, eólico, lacustre, entre os mais conhecidos) que hoje nos rodeiam em todas as latitudes, a ponto de os poder correlacionar com os do passado;
Se souber que foram ambientes iguais ou semelhantes a esses que, ao longo de milhares de milhões de anos, estiveram na origem de uma parte substancial das rochas da crosta (as sedimentares) e se adquirir preparação de base nestes domínios.
Irá entender a maravilhosa história do planeta que nos deu e assegura a vida, e deixará de olhar para a Geologia como uma disciplina desinteressante e fastidiosa que, tantas vezes, professores não habilitados, seguidores acríticos de manuais de ensino estereotipados, debitam sem entusiasmo, por dever de ofício, que o aluno decora por obrigação curricular e que lança no caixote do esquecimento, passado que foi o exame final.
Tem sido este o quadro nacional no ensino obrigatório, onde a Geologia sempre foi subalternizada. Foi este o quadro em que, salvo as sempre honrosas excepções, cresceram e se formaram as mulheres e os homens que hoje temos na política, na administração, nas empresas, na cultura, nos media, no cidadão comum.
No século X, a Enciclopédia de Os Irmãos da Pureza, obra colectiva acabada por volta 980, diz, numa notável antecipação aos modernos conceitos, que “a erosão destrói perpetuamente as montanhas e que o escorrer das águas pluviais arrasta rochedos, pedras e areia para o leito das torrentes e rios; diz-se ainda que, por seu turno, ao escoarem-se, os rios acarretam tais materiais para os pântanos, lagos e mares, onde os acumulam sob a forma de camadas sobrepostas”.
No século XIII, Alberto, o Grande (1206-1280), aludia ao “lodo agarradiço e viscoso, trazido pelas águas, que cimenta a terra (material detrítico, desagregado) e a transforma em rocha dura”.
No século XIV, Jean Buridan (circa 1300-1360), filósofo francês e reitor da Universidade de Paris, questionou algumas das concepções aristotélicas e ecreveu, reformulando uma ideia vinda da Antiguidade:
“Onde hoje se encontra o mar foi outrora terra e, inversamente, onde a terra firme está no presente, esteve o mar e aí voltará”.
No século XV, Leonardo da Vinci (1452-1519) admitia que os fósseis encontrados nas montanhas eram restos de seres vivos depositados no fundo dos mares. Polemizando entusiasticamente com os defensores de ideias conservadoras, contrárias às suas, da Vinci descreveu notavelmente os grandes processos actuais e passados da erosão, sedimentação e fossilização, numa óptica muito próxima das concepções presentes.
No século XVII, o dinamarquês Niels Steensen (1638-1686), médico e cientista, teve papel igualmente importante na área da geologia sedimentar, no seu todo, incluindo a estratigrafia, muito antes desta disciplina se ter afirmado como tal, dizia: “se as conchas e outros restos de antigos seres vivos, encontrados nas rochas de uma dada região, são despojos de animais marinhos, as camadas que os contêm são necessariamente marinhas”, concluindo que o mar ocupara essa região.
Por outro lado, ao dizer que “as camadas são formadas paralelamente à horizontal, em obediência à gravidade terrestre”, Steno introduziu o que ficou conhecido por “princípio da horizontalidade original”, concepção que lhe permitia concluir: “quando as camadas se encontram inclinadas, tal é devido a deformação posterior". Uma outra sua afirmação, segundo a qual, “qualquer camada é mais moderna do que a que lhe fica por baixo e mais antiga do que a que lhe está por cima”, foi considerada o “princípio fundamental da estratigrafia”, pois mostrou que as camadas sedimentares são cada vez mais modernas à medida que se sobe na série.
Estas afirmações constituem hoje verdades mais do que evidentes, mas foram, na época, o abrir portas a grandes passos em frente. Com este autor, as sucessões de camadas sedimentares passaram a funcionar como “arquivos da natureza”, como lhes chamou, mais tarde, o naturalista e geólogo alemão Peter Simon Pallas (1741-1811), e o geólogo francês Faujas de Saint-Fond (1741-1819), ou como “anais do mundo físico”, no dizer do padre francês contemporâneo, Giraud Soulavie (1752-1813), fundador da moderna estratigrafia paleontológica.
No século XVIII, o geólogo escocês, James Hutton (1726-1797), considerado o pai da geologia moderna, afirmou “A história da Terra pode ser decifrada a partir do estudo das rochas sedimentares estratificadas, uma vez que estas rochas se geraram de modo comparável ao dos modernos sedimentos em formação sob os nossos olhos”.
Este raciocínio é hoje usado, automaticamente, sem qualquer hesitação, quando, através do estudo das rochas sedimentares, procuramos conhecer o ambiente e as condições em que foram geradas. Uma tal concepção, que constituiu um passo decisivo neste tipo de investigação, assenta nos trabalhos de Hutton e do seu concidadão Charles Lyell (1797-1895).
Conhecido por “Princípio do Uniformitarismo”, “Princípio do Actualismo”, ou “Princípio das Causas Actuais”, dele se conhece a expressão que ficou clássica – “O presente é a chave do passado”.
Esta frase diz concretamente, na situação em que aqui é usada, que qualquer corpo de rocha sedimentar foi depositado por agentes geológicos vulgares, tais como gravidade, chuva, vento, água corrente, gelo, acções marinhas, etc., todos eles processos familiares nos dias de hoje.
As rochas sedimentares, no geral sedimentos antigos posteriormente compactados e transformados em pedra (litificados), guardam as marcas deixadas pelos ambientes e agentes deposicional semelhantes aos actuais.
É, pois, com base neste princípio que se elaboram reconstituições paleoambientais, contemporâneas das rochas sedimentares correlativas. Hutton dizia, ainda, que “a Terra é um sistema dinâmico, cuja superfície está constantemente em transformação em virtude do calor armazenado no seu interior e dos efeitos causados em superfície pela energia solar”.
Por outro lado, no desenvolvimento da teoria plutonista, de que foi o protagonista mais visível, as rochas sedimentares ganharam o significado que não tinham tido até então. Com efeito, o modelo cíclico implícito nesta visão resultava, segundo ele, de “um equilíbrio dinâmico entre o soerguimento do terreno (elevação de montanhas), por efeito do calor interno, e a sua erosão”.
Hutton mostrou, também, que os materiais resultantes desta erosão eram acumulados em sucessivas camadas sedimentares e aí consolidavam, originando rochas como conglomerados, arenitos, argilitos, calcários, entre outras.
Ao dizer que “as camadas de rochas sedimentares foram antigos sedimentos que se transformaram em rochas”, Hutton dava ênfase à petrificação ou litificação dos sedimentos, um processo geológico com duração de milhões de anos, habitualmente referida por diagénese. Dizia ainda este, que foi professor de geologia da Universidade de Edimburgo, “que não via vestígios nas rochas que lhes indicassem um começo”.
Esta outra particularidade da sua concepção cíclica trouxe novamente, para a ribalta das grandes controvérsias científicas da época, o problema da dimensão do tempo geológico, imenso na teoria huttoniana, em contraste com os cerca de 6000 anos defendidos pela Bíblia.