Os mundos de Virgínia


Adivinhava-se mais um dia muito quente!
Manhã cedo, já só na estrada ali junto ao mar corria uma brisa fresca.
A caminho do Centro de Saúde, Virgínia via à sua frente uma longa e lenta fila de carros na ponte para entrar na cidade e só pensava que iria ter além da lista de doentes previstos, vários outros a pedirem consulta sem marcação, pois aquele calor asfixiante fazia mal a toda a gente!
Só lhe apetecia inverter a marcha e voltar para a praia, onde deixara o marido e os três filhos, ainda de férias, entrar de mergulho no mar e aproveitar a brisa fresca…
Atrasada e afogueada, atravessou a sala de espera, cumprimentando, apressadamente, os doentes que a esperavam, falou com uma enfermeira e em seguida, entrou no seu gabinete.
Enquanto vestia a bata, prendia os cabelos em rabo-de-cavalo e olhava a lista de doentes que teria de atender nesse dia, só pensava que não era nada fácil gerir família e profissão… a semana ainda estava a começar e sábado e domingo mal tinham chegado para resolver os problemas lá de casa… (muita coisa a preocupava: … o filho mais velho, prestes a fazer 18 anos, a querer organizar uma ‘megafesta, ‘mas ao mesmo tempo, cheio de nervos a aguardar resultados da admissão à Faculdade de Medicina; a filha do meio com 15 anos, tão gira e gabada por todos, mas com a cabeça cheia de futilidades, tão centrada em si própria, nas modas e redes sociais, e por fim o rapazinho mais novo, de sete anos, um amor, mas ainda tão bebé e dependente da mãe… mais o marido, agora como uma criança carente, de perna estendida em repouso total a recuperar de uma cirurgia após uma fratura no futebol com amigos!)
Sentada à secretária, enquanto abria o computador, voltou a olhar para a lista, fez uma breve pausa, fechou os olhos por momentos, (murmurou ‘Por Ti, Contigo e para Ti!), e depois começou a chamar os doentes…
Sentia que a brisa fresca do mar e os problemas da sua casa tinham de ficar lá fora, ‘arrumados’ no carro, e fechada a porta, ali e agora o seu mundo era outro…
‘… D. Aurora, então como se sente, mais aliviada? Ai, eu sei, eu sei, são as artroses dos seus joelhos… ora mostre lá… vou passar-lhe uma nova receita e vai ver como vai melhorar, mas não esqueça que tem de dar uma volta ao quarteirão todos os dias…’
(… não, não consigo esquecer o mundo lá de casa… quando é que aquele meu filho cresce e percebe que não estamos em tempos de ‘mega- festas’? O dinheiro não cai dos céus aos trambolhões!
Vai ser um jantar na varanda e no máximo 12 amigos… faço-lhes um bacalhau espiritual que rende e sai sempre bem… e depois, se não entrar em Medicina este ano? Já lhe disse para ter calma, não é o fim do mundo…é muito novo! Só precisa ter juízo!)
‘… Sr. João, ora mostre-me lá os exames que eu pedi… estou a achar estranho, não sei porquê, mas já deviam estar no sistema e não estão a aparecer aqui no computador… o quê? não fez? perdeu os papéis? Ó Sr. João, valha-me Deus, mas eu já tinha pedido com urgência… vamos lá medir a sua tensão, mas o Sr. tem de fazer estes exames. Vou marcá-los já hoje …
(e Virgínia pensou de repente, se o marido se teria lembrado da hora do antibiótico… tinha de telefonar para casa quando o Sr. João saísse… pobre Sr. João, desde que estava viúvo e sem filhos por perto, estava a ficar tão desmemoriado… podia ser início de demência, ou apenas a depressão, coitado, mas ele não conseguia recuperar da perda da mulher…) …’.
Então que se passa, D. Merceana? É outra vez o filho que a preocupa? Vá lá, não chore! Ora conte lá… não se preocupe, pode falar à vontade, fica só entre nós e temos tempo! Mas vou pedir ao dermatologista para analisar esse seu sinal… não, não é verruga…, mas conte lá… (e Virgínia ouvia a mesma história, com infinita paciência! Já a conhecia há muito… o filho tardio da D. Merceana, aos 14 anos, no liceu, começara a andar com rapazes mais velhos, repetentes, que o arrastaram para a droga e agora aos 24 anos, estava na prisão e a pobre mãe, sozinha, a fazer limpezas domésticas, já sem saúde, estava cada vez mais magra, a desaparecer, devorada pelo desgosto e pela vergonha… E Virgínia pensava que ela e o marido também não gostavam de alguns amigos do filho mais velho, sempre a desafiá-lo para os copos, o famoso ‘botellón’ dos sábados no parque de estacionamento da praia…)
Os doentes iam- se sucedendo, mas a lista era grande e o almoço teria de esperar…o que apetecia mesmo era um mergulho nas ondas do mar… e um sopro daquela brisa fresca…
Virgínia sabia que entretanto, já tinha chegado o Nuno, com esclerose múltipla, 45 anos, pai de três crianças pequenas, com uma história de vida extraordinária, uma força de vontade e uma coragem verdadeiramente notáveis… tinha de o chamar, não queria fazê-lo esperar. Ele ainda trabalhava.
Mandou-o entrar e vinha com a sua mulher, uma jovem encantadora. Virgínia conhecia-os bem há alguns anos. Acompanhava de perto a evolução da doença e embora ele fosse tratado por médico da especialidade, vinha ali com alguma frequência pedir receitas… ou apenas desabafar e pedir conselho… (pobre Nuno! Está muito pior e apesar de tudo continua a lutar por manter uma atitude positiva! Até quando? O novo tratamento irá resultar??? E a mulher, tão nova e bonita, a dar-lhe apoio, sempre confiante de que virão dias melhores… são um espantoso exemplo de família e de fé para mim!
Quem me dera que os meus dois filhos mais velhos os conhecessem, talvez isso lhes fizesse bem e os ajudasse a crescer, a perceberem que a vida é bem diferente do seu mundinho confortável… e se eu lhes perguntasse se não precisam de alguns ‘babysitters’ gratuitos? Acho que os meus filhos podiam ajudá-los com as crianças!)
As consultas prolongaram-se. Virgínia acabou por não almoçar, pediu apenas uma sanduíche e um café e continuou a receber doentes. Não tinha fome, não, só mesmo queria um mergulho e um pouco da brisa fresca do mar…
No regresso a casa, ao fim da tarde, depois de ter ainda visitado alguns doentes acamados, Virgínia ainda deu um salto ao supermercado a comprar umas pizzas para o jantar, enquanto pensava na sua gente… a filha, desta vez, teria feito o que lhe pedira?
Dera o almoço, que a mãe deixara avançado, aos manos e ao pai? arrumara a casa?… ou teria sido o habitual? Acordar ao meio-dia, pequeno-almoço e ala, a correr para a praia com o irmãozinho mais novo e as amigas? Era uma miúda doce e querida, cuidadosa com o irmão mais novo, mas por ser tão gira e ter tantos rapazes atrás dela, Virgínia sentia-se cada vez mais preocupada com ela… e com aquelas modas de que não gostava nada e que já provocavam conflitos lá em casa. Na semana anterior já tinha havido sarilho… a filha tinha chegado a casa mais tarde que a hora combinada, sozinha, sem a companhia do irmão, e vinha vestida com roupa das amigas… O pai zangara-se e gritara-lhe: ‘…, mas que figura é essa? Filha minha não anda assim vestida! não percebe que uma miúda decente não pode andar com roupas dessas?
A mãe já a viu? ‘Não, Virgínia não a tinha visto. Estava a dormir, porque tinha consultas no dia seguinte e só o pai esperava a filha na sala. Ainda por cima cheirava imenso a tabaco…
E nessa noite, de tão zangado que estava, o pai, unilateralmente, decidira que não havia mais saídas à noite até ao fim das férias… ele tinha razão, mas Virgínia era mais branda e custava-lhe impor-se, contrariar… entrar em choque!
Ahhh, que difícil lidar com a adolescência! Ahhh, meu Deus, que difícil educar nos dias de hoje!!! Tantos problemas… e mais os juros da casa a subirem… o marido ainda nem tinha visto a última carta do Banco!!! Virgínia não queria preocupá-lo, logo agora que estava a recuperar da operação!
Às vezes apetecia-lhe fugir… como agora, ou pelo menos, ir só dar uma longa volta pela praia antes de entrar em casa… mergulhar nas ondas, respirar o ar fresco e sentir a brisa do mar…
Por momentos, Virgínia pensou nos seus doentes e no Sr. Lourenço de 76 anos a acompanhar permanentemente, com tanto carinho e paciência, a irmã Mariazinha, com 80 anos e com Alzheimer avançada… e lembrou -se que na verdade, havia problemas bem mais graves que os de sua casa!
Olhou para a praia, respirou fundo, sentiu a brisa fresca do mar e meteu a chave à porta. De imediato, lhe apareceu o filho mais novo, correndo para ela e saltando-lhe ao pescoço:
‘Mãezinha! Que bom! Estamos cheios de fome!’