Nuestra Señora de Aránzazu
Sentado na praia pouco ocupada, debaixo de um sol ajustado para o deleite e uma brisa que acariciava os sentidos, fiquei entre olhos fechados, a rezar, e abertos, contemplando as ondas e particularmente algumas aves.
Asas preguiçosas, deixavam-se flutuar no vento enquanto miravam possíveis presas. De chofre, asas retesadas, despencavam de uma altura próxima de quatro metros.
Como uma seta, furavam o ar e mergulhavam, como um tiro n’água. Sua forma lembrava o design de caças militares, sugerindo claramente a inspiração para o projeto de tais aeronaves.
Algumas destas aves abortavam a missão a poucos centímetros da água, porquanto a presa se evadira, com uma agilidade prodigiosa. Poderia me deixar por horas naquela contemplação.
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Em suas memórias, Humberto de Campos, o predileto de meu pai, relata a pasmaceira em que sua adolescência achava-se mergulhada.
Declara que Parnaíba, a urbe piauiense onde imolava sua existência, era um arremedo de Saturno, uma das muitas cidades do
“Norte que geram os filhos e os devoram. Dezenas de moços tomavam, cada ano, o rumo da Amazônia, onde iam ser pasto das febres nos seringais recém-descobertos. E os que não partiam, eram forçados a viver na indolência, aguardando, com simulada esperança, uma vaga humilde em uma casa comercial, ou a mudança da política para conquista de um magro lugar na Intendência do Município ou na Coletoria do Estado. Produzindo maior quantidade de material humano do que requeriam as necessidades do consumo, o excedente da produção tinha, logicamente, que apodrecer na ociosidade”.
Inevitável perceber que o Brasil não mudou nos mais de cem anos que sucederam seu relato.
Misto de esbanjamento e atraso, de luxúria e miséria, o país mergulhou na modernidade com a craca dos séculos, que limitam seu desempenho e nos colocam na rabeira da regata, postergando para as calendas o que sempre nos espera no horizonte, sem que a distância diminua.
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Embora me encante a observação da natureza, tenho espírito meio irrequieto. Não me agrada a imobilidade, o far niente.
Por isto me é prazeroso conjugar passeios com aprendizado, paisagens com cultura, voos de observação com a pesca para o espírito.
Visitando meu sobrinho mais velho em Florianópolis, numa noite muito agradável, combinamos caminhar pela praia dos Ingleses assim que o sol despontasse.
Começamos pela ponta sul, onde o leme e parte da quilha recuperados do patacho Nuestra Señora de Aránzazu encontram-se mergulhados em água controlada, para futura exposição no pequeno museu correlato.
A embarcação de duas velas naufragou naquela parte da praia em 1687 e seus restos arqueológicos foram recuperados e estudados.
Encontrei um trabalho acadêmico notável que correlaciona conchas encontradas nos destroços – só existentes no Pacífico,- objetos cerâmicos e relatos históricos para provar que se trata de uma nave tomada por corsários ingleses no Vice-Reino do Peru, em águas próximas de Pisco.
O Nuestra Señora de Aránzazu que aportou na Ilha de Santa Catarina tinha o pirata inglês Thomas Frins no comando. A tripulação fora reduzida a Frins e outros sete de seus compatriotas por perdas em combate travado perto de Guaiaquil, na última tentativa corsária da trupe.
O Nuestra Señora de Aránzazu, nome ligado ao culto mariano no País Basco, depois de ser tomado de assalto pelos ingleses, desgarrara da frota corsária, composta por muitos barcos e quase mil piratas, liderados pelo corsário Edward Davis.
O fio da meada da publicação é simplesmente fascinante e constitui-se numa oportunidade de admirar os talentos locais, que insistem em vencer o descrédito que paira sobre a cultura nacional.
Thomas Frins e seus comandados foram enviados a Santos, onde prestaram depoimento. Como não haviam cometido nenhum crime no Brasil, foram libertados. Em 1689, Frins organizou um novo grupo.
Retornou à Ilha de Santa Catarina e vingou-se do capitão mor Francisco Dias Velho, que o aprisionara. Conforme Pedro Taques, os piratas “voltaram sobre a mesma ilha armados com força de gente e lhe tiraram a vida”.
Não foi só de talento e laboriosidade que se ergueram algumas das nações que hoje lideram o mundo. Suas maldades e tropelias inundam as páginas da história. Parece inequívoco que nunca pagaram pelo mal tanto que perpetraram.
Exemplos de peso foram os piratas John Hawkins, Thomas Cavendish e Francis Drake, que aterrorizaram os mares, saqueando e transportando escravos. A despeito de tantos maus feitos, Drake, o pirata favorito de Elizabeth, para tomarmos um exemplo eloquente, é considerado um herói inglês.
Se admitimos que no recanto de Caim e Abel, também chamado Terra, é assim que as coisas funcionam, que pelo menos deploremos a hipocrisia dos corsários, onipresentes a serviço de sua majestade, o capital.