Conto: Um miúdo fora-da-caixa

 Conto: Um miúdo fora-da-caixa
Fátima Fonseca, Professora

A avó estava preocupada. O neto estava tão diferente! Como conseguir comunicar nesta fase tão difícil da sua adolescência??? E logo naquele dia dos seus 17 anos, a tempestade desabou …

Dando um forte murro na mesa da sala, Gil levantou-se, sem soprar sequer as velas do bolo de anos que a avó fizera com tanto carinho e gritou à mãe e à avó:

‘Não me chateiem mais com essa vinda do Papa… parem com essa história! já disse que não me interessa nada essa JMJ, não quero ouvir falar em conversões, nem pecados… isso não é para mim, e vou mas é para o campo para a apanha de batata na quinta de um amigo… e pagam-me bem ainda por cima!!!’

Aquele neto, tão amado, estava muito diferente… agora com ‘piercing ‘na orelha, cabelo quase rapado, pintado de cor de laranja e tatuagens nos braços, tinha vivido sempre com ela e seu marido e durante toda a infância sempre fora calmo e dócil!

A mãe, jovem mãe solteira, quando saíra da maternidade, viera para casa dos pais com um bebé nos braços, magoada no corpo e na alma, depois de uma cesariana inesperada para salvar a vida daquele bebé com cordão umbilical enrolado em volta do pescoço… e após um namoro atribulado que chegara ao fim, exatamente um mês antes do nascimento do bebe.

Gil fora o nome escolhido pela mãe, em homenagem a seu pai, um pai compreensivo que a recebera de braços abertos, e um avô que se viria a revelar como alguém muito presente e importante na vida daquele bebé, substituindo o pai ‘desaparecido’. 

Gil foi crescendo bem e com saúde, sem dar grande trabalho, e sempre sorridente e feliz. Mamava sofregamente, passava que tempos a olhar para as mãozinhas, raramente chorava, ia sorridente para os braços de todos e em breve, aos onze meses, já andava e corria pela casa toda. Todos o amavam e mimavam!

Entrou para a Infantil aos três anos e quando o avô o ia buscar de tarde e o levava diariamente, ao parque, em vez de brincar com outras crianças, ou correr para os baloiços, cedo deu mostras de preferir andar de gatas na relva ou nas pedras, atrás dos animaizinhos; observava- os atentamente, e depois, com jeito, apanhava, um a um, com uma folhinha – bichinhos de conta, formigas, minhocas e escaravelhos – e metia-os todos numa caixinha de plástico, levava-os para casa e punha-os num vaso de flores na varanda, dando-lhes água , folhas e migalhinhas de pão. Conversava com eles e inventava muitas histórias que depois contava ao avô e este escutava-o com paciência e admiração. Que garoto tão curioso! Que faria um dia mais tarde?

Quando aprendeu a ler, passava horas no quarto, estendido sobre a cama, fascinado, a folhear e a ler tudo o que dizia respeito a animais, grandes e pequenos, domésticos ou selvagens…

Na escola, detestava três coisas: matemática, zangas e lutas; protegia sempre os mais fracos, afastando-os dos garotos mais brigões e trocistas, e preferia sentar-se a um canto do recreio com os colegas mais frágeis, deficientes, ou com menos amigos, a conversar e a contar-lhes as histórias de animais que tinha lido.

‘O Gil não tem jeito para a Matemática, mas escreve bem, é muito imaginativo, é louco por terra e bicharada…. e sobretudo, tem um coração de ouro!’, diziam os professores.

Os anos foram passando, Gil tinha razoável aproveitamento escolar, mas a sua paixão continuava a ser os animais e o campo…

Aos 14 anos, sentiu profundamente a morte inesperada do avô, seu companheiro de sempre, e foi então que Gil começou a modificar-se. Ao chegar ao fim do 9º ano, que passou a custo, pediu à mãe para mudar de escola, para fazer um curso técnico-profissional e dedicar-se à agricultura. Queria trabalhar a terra e estar perto dos animais. Entretanto, deixou os escuteiros e a catequese onde antigamente os avós o levavam e arranjou novas companhias; passava muitas horas fora de casa, ficando por vezes a dormir em casa de colegas para fazer ‘trabalhos de grupo’, segundo dizia à mãe e à avó, mas no regresso a casa, cheirava frequentemente, a tabaco e a álcool, o que muito as preocupava. Contudo, no verão, ia sempre algum tempo para a quinta dos pais de algum colega, ajudar nas tarefas do campo, vinha bem-disposto e com ar saudável, e isso dava-lhes alguma tranquilidade.

Desde cedo Gil começara a perguntar pelo pai, mas ultimamente, era muito mais insistente! Não o satisfaziam já as respostas da mãe e da avó, quando lhe diziam que o pai ‘desaparecera’ e ninguém sabia dele. 

Naquele dia de anos, sem mais, nem menos, depois de se exaltar por lhe pedirem de novo para ir à Jornada Mundial da Juventude, Gil ainda disse à mãe e à avó: 

– ‘E quero que saibam… Já não sou uma criança e tenho direito a saber quem é o meu pai. Se não me dizem a verdade toda, saio de casa e vou à procura dele!’

Entre lágrimas, a mãe respondeu-lhe que sempre procurara evitar-lhe esse sofrimento, mas ia contar-lhe toda a verdade e estava mesmo disponível para o levar a ver o pai… seria, contudo, um grande choque, e tinha de o avisar, porque o pai estava internado e inconsciente… 

Mais calmo, Gil sentou-se então e ouviu a mãe:

  • ‘Sim, meu querido filho, creio que chegou a altura de te dizer toda a verdade… Sabes por que razão me preocupa tanto ver-te mudado, a beber e a fumar? Porque teu pai e eu namorávamos, quando ele começou a andar com más companhias e percebi que não aguentava os empregos, e andava no álcool e na droga. Quando tu estavas para nascer, a situação era muito grave e eu sózinha, com 18 anos apenas, e sempre a trabalhar até ao fim da gravidez, via bem como ele estava cada vez mais ‘apanhado’. Um dia, enchi-me de coragem e tive de dizer-lhe que os nossos sonhos de sermos uma família feliz estavam a ruir por completo e, ou ele mudava e largava drogas e álcool, ou era melhor sair de casa e não chegar a conhecer-te… porque eu não queria que tivesses um pai assim…e ele foi mesmo embora! Via-o à distância, desde então, muitas vezes a pedir esmola nas ruas… tudo para droga e álcool! Os teus avós foram o meu grande apoio e para ti, foram uns verdadeiros pais…Ao longo dos anos, várias vezes voltei a falar com o teu pai e ele até ia espreitar-te à saída da escola… ainda acreditei que seria possível tudo mudar e ele poder ser um bom pai; paguei-lhe internamentos para tentar a cura, mas nada resultou… hoje vive num lar entre velhos, mete dó ver um homem ainda novo assim envelhecido precocemente, estendido numa cama, inconsciente, magríssimo, à espera da morte… mas da última vez que o vi consciente e lúcido, ele pediu-me que te protegesse e não te deixasse jamais cair nos erros dele…’
  • Gil virou as costas e correu para o quarto, batendo violentamente com a porta… fechou-se à chave e chorou, chorou, chorou amargamente… no dia seguinte, não quis sair do quarto… avó e mãe tentaram falar-lhe, puseram-lhe comida num tabuleiro à porta, mas Gil nada aceitou. Por fim, ao terceiro dia, saiu do quarto. Sem dizer palavra, foi tomar banho e depois apareceu na cozinha, de olhos inchados e vermelhos, para tomar o pequeno-almoço. Em silêncio, abraçou fortemente a mãe e a avó, beijou-as apressadamente, e sentou-se à mesa. Pegou na torrada que a avó lhe oferecia, bebeu de um trago a caneca de leite que a mãe preparara e começou a comer com apetite voraz. Em seguida, olhando-as fixamente nos olhos, disse-lhes:’- Tenho de visitar o meu pai. Não quero que morra sem o conhecer e sem o abraçar!’
  • A televisão estava ligada num noticiário qualquer. Em dada altura, a jornalista parecia estar a falar da Jornada Mundial da Juventude. Gil aumentou o som. E a jornalista repetiu as palavras de um responsável pela organização da JMJ em Portugal:’… Claro que não queremos impor nada a ninguém, nem converter ninguém à força; mas sim, queremos apresentar Cristo aos jovens, propor-lhes um sentido cristão para a vida, dar a conhecer um Tesouro capaz de mudar a vida de tantos jovens que andam tristes, perdidos e confusos… queremos ser testemunho de alegria num encontro para todos, em que crentes e não-crentes vindos de todo o mundo se possam conhecer, reunir para ouvir o Papa, rezar em conjunto, dar a conhecer Cristo, e conviver uns com os outros, num clima de liberdade e respeito e na alegria dessa descoberta…’

Então, inesperadamente, Gil sorriu, com aquele sorriso meio infantil de sempre, levantou- se da mesa e olhando para a mãe e avó, disse apenas:’ sabem? Telefonou-me uma antiga colega da minha outra escola… e resolvi que já não vou à tal apanha da batata… afinal vou ficar e aceitei o convite para ir com ela e uns amigos dela a essa tal JMJ…‘

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