Conto: Encontro inesperado

A noite estava escura e abafada, anunciando trovoada iminente.
Gilberto insistira, era a festa dos 60 anos do seu irmão, e por isso, apesar de cansada e com dores de cabeça, São acabara por concordar, mesmo sem grande vontade. Não podia faltar! Tinha de acompanhar o marido!
Regressavam agora, cansados da noitada… um jantar requintado, em Palmela, com convidados chiquérrimos, grandes toilettes, brilho, luzes, música fantástica recordando êxitos de outros tempos, e muitas fotografias dignas de capa de revista…
Como sempre, Gilberto vinha ensonado, e São guiava com a janela aberta para apanhar o vento na cara… e rádio alto para se manter bem acordada…
Tinha sido um dia cansativo para ela…
Engenheira já reformada, São ainda se sentia com algumas forças para ser útil e passara a dedicar -se ao voluntariado da Cruz Vermelha no hospital onde o marido, médico, trabalhara toda a vida.
Fazia turnos de serviço na sala de espera, distribuindo bolachas e sumos, atenção e palavras de ânimo aos mais aflitos, pequenos recados e informações aos familiares que esperavam no jardim exterior, telefonemas do seu telemóvel e um pouco de conversa com os mais solitários…
Naquela manhã, já quase à hora de saída para almoço, ouviu chamar ‘D. Sãozinha! D. Sãozinha!’, e foi encontrar, estendido numa maca, no corredor, o ‘sem-abrigo mais simpático das avenidas novas’ (como ela sempre dizia!), o seu velho conhecido Sr. Aníbal, quase em lágrimas e de cabeça ligada.
– ‘Ai, Sãozinha! Tenha pena de mim…’
– ‘Que aconteceu, amigo? ‘
– ‘Deram-me uma ‘ganda’ sova esta noite… até desmaiei à porta do supermercado. Chamaram uma ambulância e trouxeram-me para aqui esta madrugada. Já fiz análises e coseram-me a cabeça…, mas estou para aqui há muitas horas sem comer e à rasquinha com vontade de ir à casa de banho…, mas ninguém me liga…’
São foi logo falar com um enfermeiro e pouco depois, já aliviado e mais animado, o Sr. Aníbal estava sentado numa cadeira de rodas, com autorização para comer algumas bolachas e beber uns sumos pela mão da sua protetora São.
Na verdade, já se conheciam há muito e Aníbal passava as noites num vão de escada perto de casa da São e do Gilberto. Davam-lhe muitas vezes de comer e remédios ou roupas, quando ele mais precisava.
Não era fácil conseguir calçado, nem roupas para aquele homem alto e grande. Mais difícil ainda, convencê-lo a tratar- se e arranjar algum alojamento para Aníbal. Já tinham tentado, mas sem sucesso.
Conheciam bem a sua triste história de vida, ligada à droga e ao álcool…, mas ele tratava-os sempre com muita simpatia e educação, e como a sua falecida mãe se chamava Conceição, passara a tratar São, carinhosamente, por D. Sãozinha…
– ‘Não leva a mal, pois não? A Senhora é um anjo bom… e lembra-me sempre a minha mãezinha que Deus tem!’
Atravessada a ponte e contornada a rotunda do Relógio, São começou a ver vários relâmpagos cruzarem o céu e logo de seguida ouviu- se o ribombar de fortes trovões. Até o carro parecia estremecer! Gilberto acordou com o estrondo, enquanto se aproximavam de casa, e comentou:
‘- Bonito! Vamos a ver se há lugar à porta de casa! Que grande borrasca! E ainda por cima, uma avaria elétrica… a nossa rua está toda às escuras…’
Só arranjaram lugar no lado oposto à sua casa e apressadamente, São e Gilberto fecharam o carro e dirigiram- se para a porta do prédio.
Subitamente, saídos do escuro, apareceram-lhes à frente, dois rapazes com facas na mão e máscaras na cara: ‘Vamos, passem para cá carteiras, telemóveis e joias… rápido! Não estamos a brincar! ‘
Porém, nesse preciso momento, um enorme relâmpago iluminou o céu e um vulto enorme de cabeça entrapada, se interpôs entre o casal e os assaltantes. Brandindo no ar, ameaçadoramente, uma grossa bengala de madeira, gritou-lhes com voz forte: ‘Alto lá! Ninguém faz mal aos meus amigos! Sei bem quem vocês são! Toca a andar daqui para fora, ou levam já uma carga de p… que nem sabem onde vão parar…’ E os gatunos desataram a fugir rua abaixo.
Com as pernas a tremer de susto, São e Gilberto imediatamente reconheceram o seu salvador! Ali estava o Aníbal à frente deles, orgulhoso do seu feito!
– ‘Ai, Sr. Aníbal! Foi Deus que o mandou… mesmo na hora!’
– ‘Então, então, amor com amor se paga e os amigos são para as ocasiões … não ia deixar que aqueles malandros os assaltassem, Sãozinha…’ – ‘Venha a nossa casa, Sr. Aníbal! Esta noite não vai ficar na rua…e confie em nós, que vamos arranjar-lhe uma solução para se tratar e conseguir um alojamento, muito em breve, se Deus quiser! A sua vida vai mudar…’- prometeu-lhe Gilberto, dando-lhe um forte abraço.
1 Comentário
São contos, senhor são, mas sempre duma sensibilidade e com uma mensagem maravilhosa. Bem hajam por eles, o mundo precisa de histórias edificantes.