Conto: Álbum de recordações
Sem espanto, mas com tristeza e preocupação, Irene olhava para a televisão e seguia as notícias sobre a recente aprovação no Parlamento francês, da inclusão do direito ao aborto na sua Constituição.
‘O mundo está tão diferente!’ – pensava ela, enquanto olhava os festejos e a Torre Eiffel iluminada, a festejar aquela loucura que abria na Europa um precedente tremendo, e de repente, Irene lembrou- se de um fim de tarde bem longínquo…
Fechou os olhos, desligou a televisão e, mentalmente, folheou o velho álbum de recordações, aquelas que ainda guardava ‘no lado doce da memória ‘…
Era uma tarde quente de Primavera, dos anos 80, e Irene sentia- se extremamente cansada. Fora um dia complicado na escola com reuniões de urgência convocadas pela necessidade de a escola tomar medidas disciplinares difíceis!
Por isso, o que mais desejava era mesmo dar de jantar aos quatro filhos e metê-los na cama depressa, para ela própria poder deitar- se mais cedo.
Aquela gravidez estava a custar-lhe mais do que das outras vezes… na véspera tinha estado em S. Bento numa manifestação em favor da vida.
E na semana anterior estivera no Coliseu a ouvir o ‘rei dos abortos’ – como lhe chamavam!- o conhecido médico americano, Dr. Nathanson, a falar de como se arrependera de tantas clínicas abortistas que abrira e tantos abortos que fizera, inclusivamente à sua própria mulher… até ao dia em que dera conta de que matava seres inocentes… depois, seguira- se um processo de conversão e agora o seu tempo era dedicado a defender a vida, andando de país em país, de terra em terra… Irene, que sempre compreendera o drama de tantas mulheres, sentira- se profundamente tocada… aquela mensagem não podia deixar ninguém indiferente!
Apesar do cansaço, de repente, uma indizível força interior a fez querer sair de casa naquela tarde. Tinha de ir a uma igreja. Queria ir à Missa. Já era tarde. Hesitou, mas telefonou à mãe, pediu-lhe para descer até sua casa e ficar com as crianças, só meia hora, e logo que ela chegou, saiu.
Viviam-se tempos difíceis. Não era só o problema da defesa da vida. A maioria das pessoas não sabia, mas no ano anterior o mundo estivera mesmo à beira de uma horrível catástrofe nuclear. O marido era militar e estava em viagem.
Irene receava pela sua vida, cada vez que ele partia em missão. E naquele dia, de novo sentiu necessidade de ir à Missa, deixar ali tudo o que a preocupava… fazer como uma sua amiga jornalista dizia: ir lá e ‘juntar os pedaços da vida que andara a partir em cacos, durante todo o dia’…
Irene meteu- se no carro e arrancou. Ao chegar à igreja, como já estava ligeiramente atrasada, deixou -se ficar no último banco.
Viu- a logo desde o primeiro momento. Era uma rapariguinha frágil, morena, de calções e t-shirt, e tinha uma lata de coca-cola com uma palhinha pousada ao lado. Sentada, de cabeça curvada, e os longos cabelos tapando-lhe o rosto, pelo movimento dos ombros, percebia-se que soluçava.
No final da Missa, a jovem não se mexeu. Não parecia querer sair. As luzes já estavam todas apagadas. O jovem porteiro começou a fechar as pesadas portas. Junto ao carro, incapaz de se ir embora, Irene viu a jovem descer as escadas por fim e sentar-se no último degrau. Não havia ali mais ninguém e Irene voltou atrás para ir ter com ela. Que idade teria? Não parecia ter mais que uns 16 ou 17 anos…
Irene aproximou- se e perguntou-lhe se a podia ajudar. Ela apenas abanou a cabeça, chorando, convulsivamente. Sentou-se a seu lado, passou-lhe um braço pelos ombros e esperou.
A jovem estava gelada e tremia. Irene despiu o casaco e pô-lo sobre as costas da jovem. E ela abriu- se e, por entre soluços e muitas lágrimas, disse-lhe o nome e a idade.
Contou-lhe que tinha 18 anos, não completara o liceu, deixara os estudos para começar a trabalhar, pois queria ajudar os pais, pessoas com algumas dificuldades, e era filha única. Vivia nos arredores. Trabalhava há um ano numa loja do novo centro comercial de Lisboa.
O patrão fora sempre muito simpático para ela, e assim, acabara por se envolver com ele, sem sequer saber que ele era casado… estava agora à espera de bebé, e quando lhe dissera, ele reagira muito mal…
Aconselhara-a a que abortasse, se queria manter o emprego, porque tinha uma família e não queria problemas… a jovem não conseguia dizer aos pais, sentia-se perdida e nessa noite não tinha coragem para voltar a casa… abortar parecia-lhe a única saída, mas sabia o que isso significava e a lei não o permitia… estava apavorada e tudo lhe passava pela cabeça. Só queria mesmo fugir…
Não foi fácil, mas depois de longa conversa no carro, à porta de sua casa, Irene lá conseguiu que a jovem lhe permitisse falar com a mãe e ainda nessa noite, os pais a tinham vindo buscar… alguns dias mais tarde, Irene recebeu um breve telefonema da senhora para lhe agradecer e a tranquilizar, dizendo que tudo estava a correr bem, mas Irene não teve coragem para perguntar mais nada…
Passaram- se vários anos. Irene tinha um pequeno sinal na pele para tirar. Fora à consulta de um dermatologista e a cirurgia já tinha sido adiada mais que uma vez. Naquela manhã, um tanto nervosa, Irene estava na sala de espera de uma Clínica de Dermatologia.
Finalmente, decidira- se a ser operada. Procurando distrair-se, folheava uma revista. Havia ali outras pessoas. Em dado momento, uma jovem com uma criança pela mão, veio ter com Irene, perguntando se não se lembrava dela. Apresentou-se e recordou-lhe aquele encontro à saída da igreja. Abraçaram-se.
Naquele momento, a enfermeira chamou Irene. A jovem só teve tempo de lhe dizer: ‘Obrigada, obrigada! Este é o meu filho… está vivo e é a minha maior alegria, graças a si! Nunca a esquecerei!’