100 anos a “Fazer o Bem”

 100 anos a “Fazer o Bem”

História da Casa de Saúde de S. João de Deus na Madeira

Neste ano de 2024, dois acontecimentos de relevo assinalam a presença da Ordem Hospitaleira de São João de Deus na Madeira: o centenário da chegada dos Irmãos e a publicação do II volume da História da Casa de São João de Deus.

As comemorações do primeiro evento decorreram no passado mês de Agosto, com a presença de entidades oficiais, e destacaram-se pelo reconhecimento unânime do trabalho ímpar da Instituição que na Madeira tem sido pioneira, referência obrigatória no campo da Saúde mental, sob o lema do “Bem Fazer”.

O centenário da inauguração da Casa de Saúde de São João de Deus na Madeira motivou, ainda, a publicação do II volume da sua História, da autoria do P. Dr. Aires Gameiro (O.H.), um trabalho de grande investigação, inventariação, levantamento de dados e factos, iniciado pelo autor em 2014 com a edição do I volume.

No segundo livro, cuja publicação está para breve, o autor recorda pessoas, grupos e realidades que se ligam à história da Casa de Saúde São João de Deus na ilha, como os Bispos D. Manuel Agostinho Barreto e D. António Manuel Pereira Ribeiro, em que se refere ao I volume, e os obstáculos, “contornos nebulosos” da maçonaria, que entre 1900 a 1924, se opuseram à presença dos Irmãos hospitaleiros, entre outras situações.

O relato histórico da Ordem Hospitaleira tem sido uma tarefa assumida desde há muito pelo padre Aires Gameiro que já escreveu sobre a História da presença dos Irmãos de São João de Deus em Portugal, a História da Casa de Saúde de São Miguel, nos Açores, entre outras publicações importantes, conforme se pode ler na entrevista que se segue.

P. Aires Gameiro, em 2014 publicou o primeiro volume de “História da Casa de Saúde S. João de Deus na Madeira” e, neste momento, dez anos depois, está em fase de publicação o II volume. Tem sido um trabalho árduo, de grande pesquisa e inventariação?

Sim. Bastante exigente e de muito trabalho de investigação e escolha de conteúdos. É importante encontrar e inventariar, mas o maior empenhamento é ler e decidir o que é importantes. Foram, de facto, dez anos de trabalho a partir dos dados encontrados para o I volume. Tem sido, contudo, agradável ir realizando a escultura deste monumento de história centenária de solidariedade e hospitalidade na área da saúde mental na Madeira. Monumento este que, como todos reconhecem, é pioneiro e marcante na evolução dos cuidados psiquiátricos na Madeira e mais além. Além deste trabalho de investigação, o tempo ainda foi dando para ir intercalando a publicação de mais de uma dezena de outros livros (um por ano) que foram saindo da gaveta para as editoras e distribuidoras e com bom acolhimento da parte dos leitores. Alguns deles  de conteúdos relacionados com temas de saúde geral e .mental.

Neste ano de 2024 assinalam-se as comemorações do centenário da presença dos Irmãos de São João de Deus na Madeira; em 2025 a chegada das Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus. O livro desta “História” é uma feliz coincidência ou já estava projetado há muito tempo?

Em 2025 ainda temos o centenário da entrada em Portugal e precisamente na Madeira, das Irmãs da Apresentação de Maria, mas as coincidências ainda se estendem ao Jubileu da Redenção de 2025. O nosso Centenário e a publicação desta “História” são, de facto, uma feliz coincidência de centenários de história atlântica de solidariedade, cuidados de hospitalidade, saúde mental, educação e de fazer o bem comum. São também histórias de evangelização atlântica e ramificações mundiais do “ide por todo o mundo e anunciai e ensinai o que Eu vos ensinei”. A Madeira está há cinco séculos, no epicentro das rotas não apenas das aventuras humanas de civilização e globalização, mas dos caminhos da evangelização mundial a todas as nações como Jesus Cristo confiou à Igreja há dois mil anos. É importante lembrar que esta foi a segunda Casa da Ordem Hospitaleira, a que se seguiram duas nos Açores, uma em Barcelos e várias em Moçambique. De facto, o livro começou a ser projetado e iniciado a partir de 2001 quando me deram a missão de dirigir esta Casa de Saúde. Em rigor, já lá vão 24 anos! Saiu o I volume, 14 anos depois, e agora, sai o II volume.

O que relata nestes dois volumes, em síntese, o que pretende trazer à memória dos nossos dias? E de entre as dificuldades e as realizações do passado no que respeita ao pioneirismo da ação hospitaleira no campo da saúde mental, e os dias de hoje, existe alguma comparação possível? Podemos chegar a alguma conclusão?

Grande questão. A história dos cuidados dos doentes e necessitados e de pessoas com doença mental, é sempre uma memória de pessoas que, por sua vez, advertida ou até sem pensar nisso, fazem a memória de Cristo que “passou fazendo o bem” e seguem o seu exemplo, na atenção a tantas pessoas que sofrem. Ao pensar nas dificuldades da vinda dos Irmãos de S. João de Deus para a Madeira logo vieram à mente o período dos Irmãos esmoleiros na Madeira a pedir para ao Casa de Saúde do Telhal, que estava apenas na primeira década de atividade, poder assistir os doentes pobres, chamados indigentes. O então Bispo do Funchal, D. Manuel Agostinho Barreto autorizou e logo pediu para enviar alguns doentes da Madeira para essa Casa e pediu aos superiores que viessem iniciar uma casa de saúde semelhante no Funchal; e avançou com uma boa notícia: a Senhora D. Paula Rego, dona da Quinta do Trapiche oferecia esta Quinta para esse fim. Mas, de imediato, pelos subterrâneos do clima maçónico e anti-jesuitismo arquitetaram-se linhas adversas para a Senhora voltar atrás na sua palavra. E misturaram-se apoios de beneméritos a favor do Manicómio Câmara Pestana e assim tornar o plano do Bispo desnecessário. E o Manicómio foi por diante como iniciativa privada, apoiada numa comissão entre 1903 e 1906, o qual foi entregue, não sem tentativas de ficar a controlá-lo e não dar esse controlo à Junta Geral, como exponho no I Volume. Confiantes na palavra da proprietária da Quinta do Trapiche e respondendo ao convite do Bispo, em 1908, vieram dois Irmãos ao Funchal, o Padre Augusto Carreto, mestre de noviços e o Irmão Cosme Millan, Superior do Telhal, para estudar in loco a fundação, e para tomarem posse da doação da Quinta, mas ao contatarem a Senhora D. Paula Rego logo esbarraram com outra palavra: “pensei doar, sim, mas já não vou doar”. E os Irmãos, contrariados, tiveram que voltar a Lisboa de mãos vazias. O Manicómio Câmara Pestana começou a funcionar e foi funcionando durante 19 anos sob a direção clínica do Dr. João de Almada, sempre em condições inconvenientes e desumanizadas, no dizer dele e das famílias dos doentes, e apesar de a equipa de enfermagem ter vindo do Porto.

E que aconteceu a seguir aos desejos do Bispo e do Dr. João de Almada?

Caíram no limbo. O Bispo continuou a enviar um ou outro doente para o Telhal, rebentou o golpe republicano com o atentado ao rei D. Carlos, veio o 5 de outubro de 1910, as prisões de Bispos, Padres, religiosos e religiosas de que a Madeira não foi exceção, como todos recordam em relação à Servas de Deus Madre Virgínea Brites da Paixão, religiosa clarissa, e Irmã e Mary Wilson, fundadora das Franciscanas de Nossa Senhora das Vitórias. Nem assim D. António Manuel Pereira Ribeiro, novo sucessor de D. Manuel Agostinho Barreto, nem o Dr. João de Almada desistiam. Veio a I Grande Guerra, a crise da I República, o assassinato de Sidónio Pais e por 1920 o republicanismo maçónico agonizava, mas resistia ao “jesuitismo” na Madeira. Em 1920-1924 outra barreira se opôs à vinda dos Irmãos. O Manicómio apesar de todos os balões de oxigénio, também agonizava e resistia. O Presidente da Junta Geral, Vasco Marques, convenceu-se, ele e os seus pares, e o Dr. João de Almada, que era agora que conseguiam consensos para os Irmãos de S. João de Deus se encarregarem do Manicómio. Mandaram vir os Irmãos Elias Pereira de Almeida e Manuel Maria Gonçalves, de Lisboa, em maio de 1920. Seria um pró-forma, pensavam, na reunião na Junta Geral no dia 28 de maio de 1920 ia haver concordância para dar o passo final. Enganaram-se, eles e o Presidente da Junta Vasco Marques. Está tudo na Ata dessa reunião, publicada no I Volume (pp.62-75) e agora republicada em apêndice no II volume. Ajuda a compreender. E voltou tudo à estaca zero até 1924.Há outros períodos difíceis mas terão de ficar para outra ocasião.

 Tem outros trabalhos do mesmo género em preparação para outras Casas em Portugal? Sente-se compensado, satisfeito, nesta sua tarefa de historiador?

Sim, tenho em acabamento a “História da Casa de Saúde de S. Miguel – Açores, Antecedentes, Inícios e Desenvolvimentos, 1890-1928-2028”. E tenho colaboração com o Centro de Estudos Interdisciplinares – CEIS20-UC, uma unidade de investigação da Universidade de Coimbra, na “História da Loucura, Psiquiatria e Saúde Mental em Portugal”. Embora não seja historiador de carreira, como amador à maneira de tantos gerontes sinto-me contente pelos milhares de páginas que tenho escrito sobre a vida de S. João de Deus, o seu século, a história da Ordem Hospitaleira e a história da Saúde em geral e de tantos temas sobre Teologia Pastoral, Psicologia, Saúde Mental e Alcooldependência.

5- Em relação a outros dois centenários na Madeira: a chegada das Irmãs de Apresentação de Maria e das Irmãs Hospitaleiras do S. Coração de Jesus, em 1925, podemos esperar alguma comunicação livre da sua parte sobre esses acontecimentos?

Temos um ano para continuar a comemorar este jubileu. De entre os atos já agendados registo: – “I Convenção sobre comportamentos aditivos e dependências das Regiões do Atlântico”, a 10-11 de outubro de 2024, em que na sessão de abertura a Diretora Geral do Instituto S. João de Deus, Dra. Cláudia Sá, fará alusão às comemorações do Centenário a decorrer; – Lançamento do livro “Uma força de Deus Padre Nuno Filipe, O.H.” de Tomás Freitas, Lucerna 2024;- Lançamento do livro da “História da Casa…”, claro, logo que saia; – Comunicação no Congresso do Centenário da chegada das Irmãs da Apresentação de Maria à Madeira um comunicação: “Papel das Ordens Religiosas na História da Solidariedade, Saúde Mental e Educação na Madeira. Estudo de Caso: tempos difíceis ao longo do Centenário da Casa de Saúde S. João de Deus”, 7-11 de julho de 2025; – Inauguração da primeira fase das requalificações dos projetos “Renascer” em construção na Casa de Saúde S. João de Deus; e talvez mais algum ato: E, por fim, – “Atos do Encerramento do Centenário”.  

6- Além dos inúmeros escritos e livros que tem publicado até agora, o que se pode esperar ainda mais da sua produção literária? Prosa, poesia, ensaios?

Se Deus me der vida e saúde que baste, não poderei ficar parado. Nas gavetas tenho trabalhos quase finalizados e alguns livros poderão sair cá para fora. Um de poemas mais recentes, outro de estudos monográficos sobre a vida de S. João de Deus, um “Carreiro autobiográfico”, e… Há mais, mas fico por aqui. Logo se verá. Qualquer produção terá que ter sentido para mim e mais alguém, e, principalmente, sentido construtivo e propósito evangélico triplo: Deus dador de dons e recebedor de serviços aos seus filhos, os irmãos mais pequenos de Jesus e, por fim, ação de graças pessoal pelos dons recebidos.

7 – Escrever para si é viver ou a vida é um livro aberto que precisa de ser reescrito e bem interpretado em todas as idades?

Podia dizer que para mim escrever me dá gozo. É dar da vida recebida; e do que recebi de um livro aberto por Deus, a criação, que fui encontrando escrita em centenas, milhares de pessoas que se cruzaram comigo, na minha longa vida, e está escrita por todo o lado e convida à leitura. O mais importante e humano deste Livro extenso de que falo, porém, está escrito, falado, cantado por seu Filho Jesus Cristo para nós o ouvirmos, lermos e dele reescrevermos resumos para oferecer leitura aos irmãos e estes os comunicarem por palavra, escrita, e obras de bem aos outros, e estes a outros, a outros, sem parar. As comemorações de um Centenário, como o que comemoramos são isso mesmo: recordar, reescrever e bem sinalizar o que foi realizado por milhares de pessoas que se cruzaram com esta Casa de Hospitalidade, desde há mais de cem anos, e de que o livro faz a memória que me foi possível.

*AG/VM

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