Via-Sacra dos abusos
A Quaresma é um momento vital na vida da Igreja porque se medita no sentido que Cristo deu à sua vida e que nos possibilitou a Salvação universal.
As 14 ou 15 estações da Via Sacra, oração própria do tempo quaresmal, dão-nos nota da caminhada de Jesus para a Cruz. Esta caminhada só se pode entender à luz da mensagem de Jesus nos três anos de vida pública. A Via Sacra é o caminho sagrado de Jesus, mas também é o caminho sagrado de tantos homens e mulheres que não desistem de levar a sua cruz.
Esta Quaresma, além da guerra e das dificuldades acrescidas devido à subida do custo de vida, tem a marca indelével dos abusos de menores. A cicatriz dos abusos torna a cruz de Jesus mais pesada. Ele, que carrega os pecados da humanidade, é chamado a carregar e a redimir mais este pecado mortal e, ao mesmo tempo, “crime” hediondo.
A Igreja sabe que, da parte de Deus em Jesus Cristo, há misericórdia. Porém, a misericórdia de Deus, ainda que não se esgote na ação Igreja e dos seus membros, é mediada também por aí. Esta mediação exige reparação deste pecado: penitência (condenação) por parte dos pecadores (criminosos); cuidado para com a vítimas; prevenção e procura de práticas pastorais seguras; criação de espaços que acolham as velhas e novas denúncias.
Para muitos, este é o fim da Igreja Católica. Estou certo que este é o fim de uma forma de ser Igreja. A Igreja é uma instituição milenar, pesada, com uma diversidade de pensamento e de vivência da fé muito distinta, com membros que vivem entre a vanguarda e o tradicionalismo… No entanto, este tema veio abanar toda a instituição eclesial portuguesa e chamar a atenção para a forma como se vive o poder e a reverência em relação aos sacerdotes e a destruição da cultura do silêncio. Por outro lado, a Igreja deve redescobrir que, à luz da fé, a dignidade da pessoa vem do batismo. Pelo batismo somos irmãos, iguais em dignidade, distintos na missão e no serviço à Igreja e à Humanidade. O sacerdote apenas exerce um serviço central na vida da Igreja, mas não está imune de pecados, que se podem manifestar como crimes na sociedade. Na sociedade, a Igreja tem uma presença incontornável pelo número de pessoas que congrega e pela atividade que exerce. O tema dos abusos veio exigir à Igreja abertura e colaboração para com as instâncias reguladoras do Estado e a necessidade de transparência.
Quanto à dimensão da vivência da dimensão sexual, é uma oportunidade de aprofundar as verdadeiras razões do celibato. Não é a possibilidade dos padres poderem casar que vem acabar com a pedofilia na Igreja. A pedofilia é uma doença que se manifesta num distúrbio pecaminoso e criminoso da vivência da sexualidade. Há pessoas casadas que são pedófilas. Se o casamento fosse a solução para o problema, teríamos uma solução, não só no ambiente eclesial, mas também social, mas não o é. O celibato é uma opção de vida para a vivência da sexualidade que, ainda que seja contranatura, se concretiza em prol de um ideal de vida em Jesus Cristo. De fato, há frustração afetiva por parte de quem opta por ele. A mesma frustração permanece nas mulheres que vivem a vida consagrada/celibatária. A ordenação de mulheres não reduz a pedofilia na Igreja. Também, nos casais há frustrações sexuais. As frustrações sexuais resultantes destas duas opções de vida não são justificantes para a pedofilia porque nem todas as pessoas que as sentem recorrem ao abuso de menores para se saciar ou sublimar.
O desafio está em prevenir e, quando acontece, denunciar, não só nas instâncias eclesiais mas civis.
A Igreja não acaba porque tem Deus como fundamento. Jesus continua a levar a Cruz para salvar a humanidade e a dizer “ouviste o que foi dito… eu, porém, digo-vos… amai-vos como eu vos amei!”. E na Cruz de Jesus vai o pecado dos abusadores e o sofrimento das vítimas porque ama Ele ama todos. Jesus não usa de vingança. Jesus AMA.
A Via-Sacra Quaresmal pode ser um momento para que, cada membro da Igreja, reze esta vergonha dos abusos, se motive à vigilância preventiva, à escuta ativa dos sofrimentos das vítimas associando-os aos da Cruz de Cristo, à denúncia dos abusos e à higiene espiritual e mental das razões de vida e de fé.
Os abusos afetam a Igreja até ao mais íntimo de si mesmo, Deus. Que a Via-Sacra seja um catarse espiritual daquilo que os abusos têm provocado nos membros comuns da Igreja, nos abusadores e nas vítimas.
*Padre Virgílio