Papel da literatura dos povos originários


Somos contadores de histórias e estas, sobretudo as mais imersivas, são a forma mais universal de entender diferentes realidades e formas de ver o mundo para além do que é observável, tangível e próximo.
Nesse contexto, a literatura produzida por escritores dos povos originários é uma ferramenta poderosa para modelar a forma com que o mundo olha para esses povos e suas culturas.
Na apresentação da antologia indígena Nós (Negro, 2019), a qual conta com escritores de diferentes povos indígenas, Mauricio Negro conta que Moura Tukano, o padrinho da geração atual de escritores indígenas, estranhava como a humanidade “branca” precisava de anos de formação para aprender o valor das coisas, das plantas, dos animais, dos seres humanos.
A dificuldade de compreensão de diferentes modos de vida é esperada quando há o encontro entre grupos culturalmente distintos, sendo esta a realidade de todo e qualquer povo.
No caso da cultura brasileira vemos que é fruto da influência de três grandes grupos: povos originários, portugueses e africanos (Cascudo, 2012b). Apesar dessa influência mútua ser esperada pela convivência de pessoas provenientes de diferentes grupos culturais, elas nem sempre acontecem de forma natural e involuntária, sendo um exemplo disso o processo de reescrita a que Tupã foi submetido.
Nos movimentos de catequização na América, Ásia e África era comum que os deuses locais fossem rebatizados, sendo que os deuses mais populares eram transformados em demônios e os mais vagos passaram a ser vistos como superiores.
No Brasil, esse processo aconteceu com Jurupari, o “grande deus popular” dos povos originários que se transformou em demônio, e Tupã, que se transformou no “Deus verdadeiro”. Sobre isso, Cascudo (2012a) diz “Tupã é uma criação erudita, europeia, branca, artificial. Seu culto foi dirigido pelos padres da catequese” (p.45), sendo que “pelo que sabemos, o culto indígena mais espalhado e seguido, o verdadeiro culto nacional, era o de Jurupari. A catequese religiosa foi obrigada a transformá-lo em Demônio” (p.45).
O interesse em converter um deus dos povos originários já existente a uma representação do Deus católico também ocorria como forma de facilitação da assimilação da nova religião pelos indígenas ao apresentar Deus como uma figura conhecida (Cascudo, 2012a). Kaká Werá Jecupé (2001), escritor pertencente ao povo Tapuia, conta que os portugueses, ao tentar explorar o conceito de Deus para os povos originários, foram expostos a Tupã, mas que eles não foram capazes de entender completamente a figura Tupã Tenondé(Grande Som Primeiro). Assim, o Deus cristão assumiu a imagem de uma entidade que os portugueses não compreendiam completamente e que, segundo Cascudo (2012a), não tinha tido significação religiosa para nenhuma tribo do Brasil até então.
Jovina Renhga, no prefácio da banda desenhada O Saci Verdadeiro (Jekupé, 2021), afirma que a literatura nativa é uma ferramenta com o poder de conscientização e com potencial de “mudar o jogo”.
Isto é tão mais importante dado que, apesar do estranhamento acontecer em uma via de mão dupla, a sociedade dominante no Brasil contemporâneo ainda é “branca”. Esta hegemonia em relação à cultura dos povos originários não é inócua e carrega consigo escolhas carregadas de uma violência velada como tão bem expresso por Jacupé (2001) “Meus pais queriam que eu sobrevivesse, e naquela altura isso significava comer da cultura ‘branca’ correndo o risco de sacrificar a ‘vermelha’” (p.13).