Observar a formação dos centríolos nas primeiras plantas terrestres

 Observar a formação dos centríolos nas primeiras plantas terrestres

Há mais de 130 anos, servindo-se de um microscópio com pouco mais que luz visível e algumas lentes, Theodor Boveri ampliou ovos de lombriga e viu-os clivar. Anos de trabalho levaram à primeira descrição dos centrossomas, e dos centríolos no seu interior, como importantes organizadores da divisão celular. Hoje em dia, os centríolos são conhecidos como parte integrante não só dos centrossomas, mas também dos cílios e flagelos, estruturas semelhantes a antenas que participam na locomoção, alimentação e sinalização celular. A microscopia tem ganho terreno desde então e máquinas cada vez mais complexas permitem-nos ver objetos tão pequenos quanto um átomo ou reconstruir a complexa arquitetura 3D de estruturas celulares.

Muito do conhecimento sobre os centríolos tem sido construído estudando a divisão de células animais num grupo restrito de espécies, como as moscas ou os humanos. “Avanços tecnológicos recentes em muitas frentes permitem-nos estudar outras espécies com grande relevância económica e ambiental”, afirma Mónica Bettencourt-Dias, investigadora principal do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC). E as plantas têm a sua própria história para contar. “A maior parte da literatura afirma que as plantas não têm centríolos e fica por aí. Mas os centríolos são criados sem um molde nos espermatozoides de algumas espécies de plantas. O organismo nunca teve estas estruturas e simplesmente fá-las, no número e lugar apropriados. Quase que parece magia”, revela Sónia Gomes Pereira, ex-estudante de doutoramento do IGC.

Um novo estudo publicado na revista Current Biology desvenda como se formam os centríolos no musgo Physcomitrium patens, revelando detalhes únicos da sua arquitetura. De acordo com os resultados, apesar de feitos com os mesmos blocos moleculares das células animais, maturam de forma muito diferente. “É a primeira vez que vemos como os centríolos se formam sem um molde na natureza com tanto detalhe. A partir de tijolos moleculares conservados, os musgos geram centríolos com características muito únicas nos seus espermatozoides. Isto mostra-nos quão plástica a evolução consegue ser”, explica Mónica, que coliderou o estudo.

Os musgos, contrariamente às plantas com flor, têm espermatozoides móveis, que dependem da água para se movimentarem, tal como ocorre nos humanos. A mobilidade é conseguida através dos seus flagelos, que contêm centríolos. De acordo com Sónia, a primeira autora do estudo, “os dois centríolos que existem na base dos flagelos formam-se juntos, mas depois separam-se e alongam-se de uma forma muito diferente. Isto não é o que acontece nos animais, onde os centríolos são muito parecidos entre si dentro de cada célula. Neste musgo, duas estruturas semelhantes nascem ao mesmo tempo e permanecem muito perto uma da outra, e ainda assim a célula consegue regular qual se alonga ou não. Há uma quebra de simetria única.”

“Inicialmente pensávamos que estas características únicas eram artefactos técnicos, algo que nunca tinha sido visto antes e que pensávamos que não podia acontecer. E então usámos a tomografia eletrónica 3D, e o que vimos passou a fazer sentido”, descreve Sónia. Tudo começa com uma amostra que é congelada a temperaturas muito baixas (criopreservação) que depois é seccionada e colocada num microscópio eletrónico de transmissão. Ali, um feixe de eletrões é transmitido através da amostra e, à medida que interage com a amostra, forma-se uma imagem. Tirar fotografias a cada grau de inclinação de cada secção permite depois reconstruir matematicamente a estrutura completa em 3D. “Este tipo de tecnologia deu-nos as três principais fases do desenvolvimento dos centríolos em 3D, com um nível de detalhe sem precedentes.”

Estudar uma grande variedade de organismos, como o musgo Physcomitrium patens, permite-nos compreender quais são as semelhanças no processo de formação dos centríolos ao longo da árvore da vida. Em animais, a manipulação dos blocos moleculares que compõem o centríolo tem constrangimentos—os animais sem centríolos não são saudáveis. “Este musgo tem-nos apenas nos seus espermatozoides, o que é uma grande vantagem. Já que os potenciais defeitos só aparecem nessas células, podemos cultivá-lo e estudá-lo como normalmente. O que aprendemos com o avançar da genética e da biologia molecular, não só da microscopia, pode abrir novos caminhos para começarmos a perceber como é gerada a diversidade”, destaca Mónica.

“Estes estudos também nos ajudam a perceber como funciona a própria evolução, especialmente nas primeiras plantas terrestes. E esta é a primeira espécie onde descrevemos esse processo”, afirma Jörg Becker, antigo investigador principal do IGC agora no ITQB-Nova Green-IT, que coliderou o estudo. Os musgos são cruciais para os ecossistemas, principalmente os recém-formados: estabilizam a superfície do solo, reduzindo a erosão, e mantêm a humidade, reduzindo a evaporação da água, enquanto permitem que outras plantas cresçam. “É crucial perceber como se reproduzem e vivem, e a partir desse conhecimento construir a base para intervenções futuras, em caso de necessidade”, acrescenta o investigador.

*Instituto Gulbenkian de Ciência

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