O Cão pré-histórico português

 O Cão pré-histórico português
Paulo Freitas do Amaral, professor de história

Há descobertas arqueológicas que, mais do que nos falarem de datas, ossos ou cronologias, nos tocam naquilo que temos de mais humano: a capacidade de sentir e de estabelecer vínculos.

O chamado “Cão de Muge” é um desses raros achados que, vindos do fundo da pré-história, nos interpelam diretamente como homens e mulheres do presente.

Nas margens do Tejo e do Sorraia, em Muge, foram descobertos, já no século XIX, os célebres concheiros mesolíticos — autênticas bibliotecas naturais onde se acumulam conchas, ossadas e objetos de comunidades que viveram há cerca de sete a oito mil anos.

Foi nesse contexto que surgiu o esqueleto de um cão, mais tarde guardado no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, durante décadas.

Uma presença silenciosa, à espera de que a ciência tivesse ferramentas para contar a sua história.E essa história começou a ser contada agora.

Graças a análises tecnológicas recentes, sabemos que o animal teria vivido entre 2 e 6 anos de idade. Mais revelador ainda: foi depositado com cuidado, num gesto que transcende o simples descarte de restos animais.

A arqueologia mostra-nos, com rigor quase científico, aquilo que o coração humano já adivinhava: há milhares de anos, os homens do Mesolítico olhavam para os cães não apenas como auxiliares de caça, mas como companheiros, dignos de afeto e de memória.

Este dado comove porque nos humaniza.

Em Muge, muito antes de a agricultura se consolidar, muito antes das cidades e dos impérios, alguém se inclinou sobre o corpo de um cão e decidiu dar-lhe um fim digno.

Esse gesto, conservado no silêncio das areias e conchas do Ribatejo, é um testemunho de proximidade, de confiança e até, diria, de amor.

Não se trata, portanto, apenas de um achado arqueológico. Trata-se de um símbolo da antiguidade da ligação entre o homem e o cão.

Uma ligação que continua a marcar-nos, seja no campo ribatejano, nas cidades ou nas nossas casas. Ao olharmos para o “Cão de Muge”, reconhecemos que a amizade entre espécies atravessa o tempo como uma das mais belas constantes da condição humana.

O Ribatejo, terra de rios e de memórias, não nos dá apenas paisagens férteis e tradições vivas. Dá-nos também esta janela para um passado remoto que continua a iluminar o presente.

O “Cão pré-histórico português” é, assim, um motivo de orgulho para todos nós: mostra ao mundo que, aqui, na beira do Sorraia, nasceu uma das mais antigas histórias de amizade da humanidade.

*Paulo Freitas do AmaralProfessor, Historiador e Autor

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