Narrativas: natureza e revisionismo
Dentre as coisas que me dão prazer, viajar e aprender está perto do topo.
Lá nos vamos uma vez mais para o Mato Grosso. Do Sul, para não ferir suscetibilidades. Afinal, segundo me disseram, os do Sul fazem questão de não serem confundidos.
Que venham os ipês floridos, as araras pantaneiras, o tuiuiú, a ave símbolo do Pantanal.
No aeroporto de Congonhas, ao descermos a escada rolante, nos deparamos com um painel eletrônico, gerido pela Infraero, com uma frase mais ou menos assim: “O Brasil voltou a ter reconhecimento internacional”.
Não sabia que perdera, à exceção da turma que deseja meter-se na Amazônia e determinar o que fazemos na nossa própria casa. Ou daqueles brasileiros que abrem nossas riquezas como se tivessem a mesma liberalidade dos esquimós… Nada contra, mas não nasci num iglu.
Assim que saímos do estacionamento em Campo Grande, duas araras nos deram boas vindas, acompanhando o carro por alguns segundos, até cruzá-lo em diagonal, com seu grito de liberdade.
Que país é o Brasil! Não precisa ser ufanista para reconhecer isto e colocar-se genuflexo pelo tanto que nos foi destinado.
“Precisamos reconstruir o Brasil”. É outra frase disseminada por quem acaba de assomar no poder.
Dita e repetida à exaustão pelo mesmo lado que destruiu o país e o deixou com desemprego elevado, estatais deficitárias e um rombo orçamentário pra ninguém botar defeito…
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No mesmo final de semana em que embarcamos, o ungido à presidência, propalado como pai dos pobres, hospedou-se num hotel com diária estratosférica.
Foi a Londres para assistir a coroação de Charles III, que enfim toma o cetro. Visto há muito como um reprimido, quiçá condenado a jamais tomar o lugar da longeva mãe, o rapaz deu um nó na ortodoxia anglicana para assumir Camila Parker Bowles e a coroa.
Bem, isto não me diz respeito. A mim preocupa sua conversinha sobre natureza, haja vista que é um dos embaixadores, por assim dizer, do reme-reme da mudança climática.
Charles criou o International Sustainability Unit (I.S.U.). Seu pai foi presidente do WWF por muitos anos e era, ao morrer, patrono da organização.
Para os desinformados, WWF significa “World Wildlife Fund”, que em tradução não literal virou Fundo Mundial da Natureza.
A WWF tem em sua rede a Iniciativa Amazônia Viva. E assim colocam o bedelho em nosso país. Seria interessante, até, se houvesse reciprocidade.
Se pudéssemos nos meter na poluição das grandes cidades inglesas, causada pelo dióxido de nitrogênio, ou cientistas argentinos pudessem estudar a pesca predatória nas Malvinas.
Não esqueçamos que a mineradora Samarco, aquela do estouro da barragem em Mariana, é controlada pela Vale e pela BHP Billiton SPL, braço inglês da gigante anglo-australiana BHP Billiton.
O episódio da barragem tem dimensão suficiente para ocupar o agora rei pelo resto da vida, mas esta gente prefere ditar o que devemos fazer com a Amazônia.
Em 1876 D.Pedro II e sua comitiva chegaram no porto de Beirute. Consta que viajou até as ruínas romanas de Baalbek, que tive a oportunidade de conhecer, por tração animal.
Em seu diário registrou a experiência:
“A entrada nas ruínas de Baalbeck, à luz de fogaréus e lanternas, atravessando por longa abóbada de grandes pedras, foi triunfal e as colunas tomavam dimensões colossais“.
Escutei de um diplomata brasileiro locado no Oriente Médio que D. Pedro II não quis hospedar-se num hotel. Fez questão de passar a noite numa tenda, fruindo da experiência milenar dos locais. Sabidamente culto, o aristocrata Bragança poderia ter pernoitado num hotel próximo, onde se hospedavam os de sua classe.
Quanto ao “pai dos pobres”, não poderia hospedar-se num hotel com diária modesta? Ou na nossa Embaixada em Londres?
Alvo de protestos contra sua idoneidade, pendurou mais uma no prego de sua hipocrisia. O que temos a ver com isto? Bem, se ele pagar suas exorbitâncias do próprio bolso, nada.
Há algum tempo desejava visitar Cerro Corá, onde tombou Solano López. Acossado pelo Exército Imperial, López chegou ao seu final depois da demorada perseguição por mais de quatrocentos quilômetros.
Por volta de trinta oficiais o acompanhavam, juntamente com a esposa, Elisa Lynch, filhos e um magote de soldados, velhos e crianças esfarrapados e famintos.
Assunção caíra em janeiro de 1869 e o que restara do exército paraguaio chegou no Cerro Corá em oito de fevereiro de 1870. As tropas brasileiras, comandadas pelo General Câmara, o cercaram, sem que os paraguaios percebessem, bloqueando rotas de fuga. O que parecia um lugar seguro, no topo da elevação, se tornara uma ratoeira.
Montado num cavalo, atacado por inúmeros, López foi atingido por um machado, que não o matou porque o chapéu que utilizava amorteceu o golpe, e por uma lança, que o feriu no baixo ventre.
Auxiliado por dois oficiais, conseguiu escapar do entrevero por uma centena de metros até desabar na margem de um riachuelo.
As gravuras que representam a cena superestimam o Aquidaban-nigüi, acanhado, patético para um final dramático de uma guerra que dizimou o Paraguai e causou a morte de mais de cinquenta mil brasileiros.
Naturalmente não isento López, afinal aprisionou o vapor Marquês de Olinda, no qual viajava Frederico Carneiro, o novo governador da Província do Mato Grosso, que aliás morreria em Assuncion de forma lastimável. Ato contínuo, os paraguaios atacaram o forte de Coimbra, em Corumbá, Bela Vista, Uruguaiana e Corrientes, na Argentina.
Foram passos muito mal dados, desastrosos para um povo que ascendia. Terminada a guerra, López era execrado.
Elisa Lynch só escapou do pior porque gritou que era inglesa. Permitiram que sepultasse o marido e o filho e acabaria exilada na França. Segundo o memorial em Cerro Corá, as mulheres paraguaias não admitiram sua permanência no país.
Estudamos a história recriminando López como um megalômano, um desvairado que atirou o Paraguai na desgraça, atrasando seu progresso em mais de um século.
Na década de sessenta do século passado teve início um revisionismo histórico, patrocinado pela presidência de então. Assim, de uma caracterização como monstro, López foi sendo aceito como um herói, com direito a um lugar no panteão da pátria em Assuncion.
A mim não compete julgá-lo, muito menos advogar seu resgate histórico. Sempre é interessante, porém, analisar o que pensam os outros. Num quadro do pequeno museu de Cerro Corá há um texto atribuído a López, acossado pelas derrotas e funda decadência:
«Si los restos de mi ejército me han seguido hasta este final momento es que sabían que yo, su jefe, sucumbiría con el último de ellos en este último campo de batalla. El vencedor no es el que se queda con vida en el campo de batalla, sino el que muere por una causa bella. Seremos vilipendiados por una generación surgida del desastre, que llevará la derrota en el alma y en la sangre como un veneno el odio del vencedor. Pero vendrán otras generaciones y nos harán justicia aclamando la grandeza de nuestra inmolación. Yo seré más escarnecido que vosotros, seré puesto fuera de la ley de Dios y de los hombres. Se me hundirá bajo el peso de montañas de ignominia. Pero también llegará mi día y surgiré de los abismos de la calumnia, para ir creciendo a los ojos de la posteridad, para ser lo que necesariamente tendré que ser en las páginas de la historia.»
O revisionismo iniciado por Alfredo Stroesner fez de frases como estas suas pedras de alicerce. Deixei Cerro Corá com muitas indagações e, confesso, certa melancolia.
López pode ter sido desequilibrado, incompetente, megalômano. Mas uma coisa é certa: não era covarde.
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No retorno ao nosso chão, pernoitamos em Bombinhas, que não conhecíamos. Pulei muito cedo da cama para percorrer, pé na areia, um pouco deste pedaço de paraíso terrestre.
Como Deus ajuda quem cedo madruga, com o sol mal apontando no horizonte, assisti os pescadores correndo para colocar o barco na água, lançar sua rede e puxá-la.
As tainhas pescadas foram uma vez mais testemunhas da tradição daquela gente, que mantem viva a pesca artesanal.
Num dos vídeos que produzi lancei mão da palavra identidade e associei muito do que está acontecendo no mundo à tentativa de destruí-la.
Ao torpedear o bom senso, propalando coisas bizarras, antinaturais, como a ideologia de gênero, a humanidade comete um suicídio moral de consequências imprevisíveis.
Se o revisionismo paraguaio tem reflexos positivos, restaurando a autoestima de um povo e cicatrizando feridas, outros revisionismos são um verdadeiro tonel de cicuta.
Incendiar e estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, remover estátuas de Leopoldo II na Bélgica, de Cristóvão Colombo, George Washington, Thomas Jefferson e de líderes confederados nos Estados Unidos, não passam de manifestações de insanidade cultural.
Destruir referências morais e a identidade de culturas coloca o mundo de cabeça pra baixo.
Não creio que isto possa ser espontâneo, que dispense planejamento e coordenação de alguma forma e profundidade.
Por fim, poderia dar relevo ao prêmio que Bombinhas conquistou semanas atrás numa feira de turismo, na Alemanha, na categoria Cultura e Tradição, no concurso anual “Green Destinations Story Awards”, por conta da história da pesca artesanal da tainha.
Estas coisas, porém, não me seduzem, porquanto desconfio de gente que se mete nas nossas coisas, mesmo que sob o pretexto de premiar. Benditos os pescadores de Bombinhas, muitos dos quais com ascendência açoriana.
Não parecem preocupados com prêmios além dos peixes capturados, que saltam na areia. Mestres na arte, talvez os pescadores nem se interessem em saber onde fica Berlim.