MURIÓ LA VERDAD


Enquanto o inverno parece agarrar-se em raízes à beira do peral, resistindo a despencar-se no precipício do tempo, tímidos sinais já traduzem a estação que por fim abrirá os olhos. Que venha a primavera antes que seja atropelada pelo verão.
Nas últimas noites, frias e instáveis, apareceram vagalumes, ensejando uma cena celestial, com seus pisca-piscas de fraca intensidade. Não, não iluminam, exatamente. Encantam. Não mostram o caminho, como um farolete, mas nos lembram que o mundo é belo.
Em meio a muito desalento por onde ando, em pleno período eleitoral, acicatado pela impunidade, não me entrego à tristeza por mais do que alguns minutos. Por conta de algumas decisões, que reabilitaram figuras que bem podiam ficar no passado, creio que a sensação geral é de impunidade. Que parece existir desde sempre no país e talvez seja a razão fundamental pela qual até hoje não conseguimos consertá-lo.
Há muitos atores neste palco infeliz, afinal o teatro é a terra do faz-de-conta. Aos amigos, tudo, aos inimigos, a lei. Getúlio Vargas a teria cunhado. Pelo sim, pelo não, tornou-se um mantra que condena ladrões de galinha e liberta malfeitores do erário. Conheço operadores do Direito que não acreditam mais na sua profissão, mas as hostes do judiciário longe estão de sentar praça sozinhas neste enredo.
A imprensa, cantada em verso e prosa como o quarto poder, tem declinado de seu papel de informar, de apurar os fatos e suas versões. Ao contrário, o que se vê é muito “copiar-colar”, seja de agências noticiosas, seja de veículos concorrentes. Daí a sensação de que estamos sob a ditadura do pensamento único.
No opúsculo “Os novos cães de guarda”, Serge Halimi, diretor do periódico de esquerda Le Monde Diplomatique, acusa a mídia dominante de manipulação em prol das ideias de livre mercado. Denuncia a pobreza de vários veículos franceses e sua mesmice: “a pluralidade das vozes e das publicações não levam, de modo algum, ao pluralismo das opiniões dos comentaristas”. E pergunta “quantas pequenas violências não sofrem, cotidianamente, a verdade e a análise no silêncio de nossos pensamentos entorpecidos?”.
O que chega a ser cômico é que no Brasil se tenha a sensação inversa: a de que a grande mídia seja dominada pelo pensamento de esquerda, tendo como alvos no estande jornalístico de tiro os expoentes liberais. Por conta disto, um deslize de um sujeito de direita tem a repercussão de uma bomba nuclear, enquanto crimes da esquerda são penalizados de forma leve, ou esquecidos na pauta tendenciosa das redações.
Em prol dos jornalistas, poder-se-ia evocar um trecho de “Os novos cães de guarda: “Por que, então, o profissional da informação colocou em sua cabeça, de repente, bancar o senhor do mundo, esquecendo que, na maioria das vezes, devia sua notoriedade à visibilidade que lhe é oferecida e não tanto aos talentos que cultiva? Como foi possível imaginar que um industrial iria adquirir um meio de comunicação influente, deixando de impor sua orientação?”.
Isto não isenta os jornalistas. Pelo contrário, sugere que em sua vaidosa leviandade imaginem manipular os patrões enquanto estes movem os cordéis ou simplesmente fazem valer suas ideias.
Halimi reproduz uma afirmação que atribui a Arthur Sulzberger, do New York Times: “Se estou, à noite, em casa e descubro que algo que não me agrada será publicado na primeira edição do dia seguinte, não tenho qualquer hesitação em chamar o desk e lhe dizer: ‘Retire essa matéria’ “. Halimi afirma que os mercados financeiros utilizam a mídia, seja de direita ou se diga de esquerda, como ventríloquo “num mundo sem sono e sem fronteiras”.
A tela de Goya, cuja denominação encima este texto, mostra uma mulher, que personifica a verdade, morta, cercada por uns tantos que a sepultarão. Sepultar a verdade é a coisa mais insana que a humanidade pode cometer. As injustiças, as manipulações, as conjunturas apodrecidas que se mostram perenes, certamente têm na morte da verdade seu alicerce. Enquanto dissipamos precioso tempo em confrontos ridículos, nos submetemos ao garrote ideológico.
Num tempo em que a esquerda difunde a ideia de resistência no Brasil e se proclama progressista no mundo inteiro – sugerindo que a direita representa o atraso,- gostei da forma como Halimi encerra seu livro: a lucidez é uma forma de resistência.
Mas não dá para levar a sério um veículo cuja edição brasileira, a pouco mais de duas semanas do segundo turno da eleição presidencial, estampa em sua capa uma efígie do candidato cuja soltura a quase todos surpreendeu com o título “Resgatar a democracia”. É um malabarismo que até entendo, mas repudio. É mais ou menos como jurar fidelidade à verdade enquanto se despacha pazadas de terra sobre ela. É como matar a verdade e chorar em seu velório.