Morreu a Vida

 Morreu a Vida
morreu a vida
Padre Aires Gameiro

O paradoxo de que a vida é uma doença mortal, faz sentido, mas não todo. As festas da Exaltação da Cruz e da Mãe das dores (dias14 e 15) contrastam com a atitude limitada ao horizonte da cova no cemitério. O cenário à volta da morte da Rainha Isabel II evoca o de Santa Helena no século IV a elevar a Cruz, já sem Cristo, junto do túmulo que ficou vazio porque a Vida matou a morte. Nos cenários da fé cristã, de há dois mil anos até hoje, milhões testemunharam, com a entrega do seu sopro vital do corpo Àquele de quem o receberam, entregas que ampliam as interrogações presentes nas manifestações mundiais de uma Rainha Isabel II que as multidões choram e louvam teimando que morreu, mas não está morta. Viveu com o seu espírito vital entregue a uma missão de grandeza humana e cristã que recebeu como vontade de Deus, que ao criá-la lho entregou para o viver no amor ao serviço d´Ele e do povo. Não será esta dupla entrega, D’Ele e dela, que está a fazer vibrar milhares e milhares de pessoas de todos os quadrantes étnicos, religiosos e cristãos junto do seu corpo, no sentido pleno dado e recebido de brisa vital eterna? As palavras recolhidas por alguns dos seus biógrafos indiciam que ela viveu em coerência e fé cristã mais de 70 anos a tecer a sua vida com a sua missão de Rainha, pintando um quadro eloquente multifacetado de palmeira erguida em fortaleza de valores perenes, apesar das mil estações e tempestades da história.

Em cenário paralelo de coragem surpreendente, faleceu Mikhail Gorbachov, a 30.08.2022, com 91 anos. Enquanto a Rainha Isabel II se moveu mais de 70 anos, fiel aos valores da tradição cristã, num mundo de mudanças políticas aceleradas e tumultuosas, o Prémio Nobel da Paz Gorbachov rompeu com uma tradição política anquilosada de 70 anos. Recebeu os aplausos pela sua coerência e ousadia, humana e política, (de batizado que era?) por mover um colosso monstruoso: de abismos opacos, para a transparência; de escravidão anacrónica para a liberdade e da mentira hipócrita para a verdade.

O cenário apoteótico à volta da Rainha evidencia profundos aspetos humanos religioso-místicos de sabedoria, em contextos de consensos alargados menos perturbados por ideologias político-partidárias extremistas. Uma vida coerente. As congratulações que Gorbatchov recebeu ressentiram-se de reticências e entraves ideológicos e partidários; os efeitos políticos foram até à reversão caótica. Alguns deploram a má figura do Ocidente na memória deste grande homem. Terá sido deixado sem apoio adequado no seu gesto libertador. Os oligarcas das sombrias áreas corruptas da sociedade russa e ocidental apoderaram-se de bastantes sectores económicos e não faltaram os que dividiram o país, e o levaram de novo à divisão e à má possessão, como se lê em Mateus (cf. Mt. 12, 26), na questão ainda a ecoar: se Satanás expulsa Satanás, dividido contra si mesmo, como evitará a destruição? O banho mediático dos cenários evoca vidas paralelas. No arco da vida da Rainha e de Gorbachov viveram muitos milhões de pessoas: uns a acelerar as mudanças e catástrofes, outros a moderar algumas com sabedoria, e mais de 100 milhões a sofrer abalos violentos até aos holocaustos perpetrados por agentes do mal. Nos tempos em que o tema da longevidade é recorrente e se vai sobrepor a novo dia dos Idosos (1 de outubro), que são cada vez mais, será que uns e outros crescem em sabedoria? Ou crescem mais as tempestades, de ação humana, destruidoras do bem comum e da vida? São incalculáveis as vítimas de morte violenta sofrida a testemunhar o Vencedor da morte. Os desafios da longevidade não são para, na ilusão de responsabilidade, dizer: matem-me. Cada vez mais jovens e idosos deixam a questão responsável, essa sim, como ouvi há dias de alguém quase longevo: que estou aqui a fazer? Qual é a minha missão? Questão atual, em instituições de saúde, de idosos, adultos e crianças; e em instituições monárquicas e governativas, de muito ou pouco poder. E onde encaixam aqui os testemunhos da Rainha? Ela deu testemunho: «Para muitos de nós, nossas crenças são de importância fundamental. Para mim, os ensinamentos de Cristo e minha própria responsabilidade pessoal diante de Deus fornecem uma estrutura em que tento levar a minha vida. Eu, como muitos de vocês, alcancei grande conforto em tempos difíceis a partir das palavras e exemplos de Cristo» (Natal 2000).

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