Conto: Dia dos Avós e JMJ

 Conto: Dia dos Avós e JMJ
Fátima Fonseca, Professora

A avó Felícia acordou naquela manhã com uma invulgar sensação de alvoroço, como se o coração lhe adivinhasse algo de bom… abriu a janela do quarto bem cedo para respirar o ar fresco e pela janela viu o estendal do 2º andar cheio de roupinhas de bebé e sentiu o cheiro a lavado!

Sabia que os jovens vizinhos tinham acabado de ser pais de um rapazinho, depois de vários insucessos, mas desta vez tudo correra bem, graças a Deus, e sairiam da maternidade nesse dia de regresso a casa.

Felícia já falara com eles pelo telefone e sentira que a felicidade deles era uma alegria contagiosa…

Naquela manhã, Felicia voltava a sentir-se estranhamente feliz, e nem compreendia o porquê, pois na véspera deitara-se muito triste e preocupada…

Tinha visto uma foto da neta Margarida à hora do jantar no telemóvel do filho e, ao contrário dos outros netos, irmãos de Margarida, que riam a bom rir, Felícia ficara silenciosa e triste!

A sua querida e linda neta mais velha, empoleirada no alto de um rochedo, com cabelo pintado de azul, uma franja minúscula, um brinco no nariz, toda vestida de preto, a boca com batom escuro, as unhas também pintadas de preto, cheia de tatuagens esquisitas nos braços e pernas… serpentes, cabeças cortadas… que lhe teria acontecido nestas últimas semanas? Que lhe teriam feito? Estava irreconhecível…

Com quem andava? Que aventuras tivera? Que experiências fizera? E se ela não voltasse?

Percebia que já não a podia proteger como na infância, quando lhe recomendava um panamá na cabeça e protetor solar em dias de calor, ou o cachecol, um anorak e chapéu em dias de chuva e frio… as suas recomendações já não a podiam defender de perigo algum…eram bem maiores os perigos que agora antevia…

O pai de Margarida apressara-se a desvalorizar, dizendo: – ‘A Mãe não se preocupe! Aquilo passa-lhe… vai ver que quando cá chegar, volta a ser a mesma… aquilo é só uma experiência!!!

Ela precisava crescer e sair das saias da mãe… e da avó… o interRail com amigas e amigos faz lhe bem… e daqui a pouco logo que se lhe acabar o dinheiro, está de volta! Lá para a semana que vem, ou depois das Jornadas, ela volta…’

Contudo, Felícia lia nos olhos da nora a mesma preocupação que ela própria sentia…
Antes de se deitar, depois de todos se terem despedido e de ter fechado a porta, chamara a sua ‘ dama de companhia ‘(agora chamavam- lhe ‘cuidadora’, mas ela gostava de usar os termos de antigamente), e como não se entendia com as modernices dos telemóveis, pedira-lhe para a ajudar a gravar uma mensagem de voz… para enviar à neta e dissera assim:

‘Minha querida netinha Margarida! Estou cheia de saudades! Hoje os pais e manos vieram jantar aqui a casa. Mostraram-me uma foto, mas eu não reconheci a minha querida neta! Por favor, volte depressa, tenha cuidado com a sua saúde de corpo e de alma. Espero que consiga chegar a tempo das Jornadas Mundiais da Juventude aqui em Lisboa… beijinhos da avó Felícia que gosta muito de si!’

Sim, aquela neta fora a primeira! Vivera sempre por perto, a avó, então bem mais nova e com mais energia, tricotara as primeiras mantinhas e casaquinhos, tomara conta dela durante o dia, levara-a tantas vezes ao parque, cozinhara as suas primeiras sopas, quantas histórias lhe contara, depois ensinara-lhe as primeiras letras e os primeiros acordes na viola… e mais tarde dera-lhe explicações quando necessário… quantas conversas, confidências e brincadeiras… que saudades!

Agora, Margarida era uma jovem de 18 anos… a avó Felícia sentia-a diferente, cheia de dúvidas existenciais, ora exuberante, carinhosa e divertida, ora reservada, distraída e esquiva… nervosa, sem saber que caminho seguir, que área estudar, dividida entre Artes e Ciências, uma boa cabeça, com notas razoáveis, mas sempre inquieta, apressada, cheia de amigas e amigos, a olhar constantemente para o telemóvel…

A Avó Felícia nunca forçara o diálogo nem com filhos, nem com netos… abraçava-a com carinho, ia à janela dizer-lhe adeus, quando ela subia para a moto e partia em grande velocidade, depois entrava no seu quarto e limitava- se a rezar por ela, sempre na esperança de que o tempo e alguma boa companhia a ajudassem a descobrir o seu caminho!

Porém, estava preocupada. Sentia o peso dos anos, o coração batia-lhe descompassado muitas vezes, Felícia sentia a vida a fugir-lhe, sabia que não duraria muito, mas queria tanto morrer mais descansada, saber que a neta estava bem encarreirada…

Naquela manhã, ao ligar o rádio para ouvir notícias, enquanto tomava o pequeno almoço, perguntara à dama de companhia se havia resposta da neta, mas ela espreitara o telemóvel e dissera que não…

À hora do almoço quis ver um pouco de televisão e apercebeu-se de que havia muito entusiasmo e muita gente nova nas ruas, acenando à passagem dos ícones da Jornada Mundial da Juventude que em breve começaria… aliás, ficou a saber que ao fim do dia, passaria o autocarro quase à sua porta e Felícia queria engalanar a sua janela como se fazia noutros tempos em dias de festas especiais.

Há muito que a avó Felícia não sabia o que era aquela sensação de expectativa de algo grande que está para acontecer e perturba os corações… deitou-se um pouco, como o médico recomendava que fizesse depois do almoço, mas não conseguia nem fechar os olhos… quando se levantou, levou flores para a varanda, trouxe um candeeiro de pé alto para perto da janela e pôs-se à espera…viu chegar os jovens pais e seu bebe, acenou-lhes da janela, pensou que queria lá ir num dos próximos dias, levar um presente e felicitá-los… e continuou à espera…

A cuidadora trouxe-lhe uma cadeira e um casaco porque a tarde esfriara e, entretanto, anoitecera, e em breve começou- se a ouvir música… era o hino das Jornadas.

Felícia nem queria jantar sem ver tudo até ao fim. Aproximava- se, entretanto, a polícia montada em suas motos, sinal de que o cortejo estaria já perto… o coração de Felícia batia fortemente! Chamou a cuidadora para perto de si… ‘deve estar quase a chegar aqui… venha ver, venha ver!’

E no preciso momento em que a camioneta descoberta passava na rua, acompanhada de uma multidão de gente nova a cantar, ouviu-se de repente, um toque repetido na campainha da rua, aliás, três campainhadas, fortes e insistentes.

Felícia e a cuidadora foram ver quem era. Que estranho! Não esperavam ninguém! Lá em baixo, no intercomunicador, uma vózinha conhecida fez-se ouvir… não podia ser! Felícia não acreditava!

O elevador subiu, a porta abriu-se de rompante e Margarida apareceu, correndo para a avó! Era ela mesma! Sim, com cabelo azul, tatuagens e roupa preta…, mas era a sua querida Margarida que estava de volta!

‘Querida avozinha do meu coração! Tinha que lhe fazer esta surpresa! Hoje é Dia dos Avós! Julgava que eu alguma vez me ia esquecer???’

E avó e neta abraçaram-se e beijaram-se, com imenso carinho, repetidas vezes… lá em baixo os jovens cantavam:

Todos vão ouvir a nossa voz, levantemos os braços, há pressa no ar…Jesus vive e não nos deixa sós: Não mais deixaremos de amar…

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