Conto: Coisas sem importância

O dia tinha decorrido praticamente sem incidentes, registando-se mais afluência às urnas que em outros anos.
Aproximava-se finalmente a hora do fecho das mesas e das contagens e recontagens de votos…
David já estava um tanto saturado e arrependido de se ter oferecido para ficar numa mesa de voto… a verdade é que sentia algum remorso por ter deixado a mulher sozinha em casa com quatro crianças, sendo uma delas um bebé de poucos meses; contudo, apesar de não terem família de apoio em Lisboa, ela insistira em que ele fosse dizendo que ficaria bem com os miúdos e ele lá sacrificara o dia todo por conta daquele serviço patriótico à Nação em dia de eleições.
E ali estava no seu posto a consultar listas de eleitores e a confirmar os dados de cada um a ver se conferiam… (o passatempo era quase um único: olhar bem para cada votante e imaginar em que partido iria votar…).
Eis senão quando uns escassos minutos antes das sete da tarde, vê chegar uma senhora baixinha e frágil, de cabelo curto pintado de louro, mas nitidamente com problemas de mobilidade e já de alguma idade… vinha pelo braço de um jovem, por certo um neto ainda sem idade para votar.
David reconheceu-a de imediato… não tinha dúvida alguma… só podia ser ela! Sorriu-lhe, mas ela não pareceu notar e muito menos reconhecê-lo… pudera! David engordara, e para compensar a luzidia careca, deixara crescer barba e bigode, aqui e ali já ponteados de alguma brancura…
Quantas recordações guardadas no ‘lado doce da memória’!
A professora Angélica Maria Pereira estava ali à sua frente, volvidos trinta e tal anos desde que saíra do colégio; nunca mais se tinham visto… nesse tempo, ela era da direção da cooperativa a que pertencia o grande colégio de rapazes onde David estudara desde criança… pouco contacto tinham, até porque o gabinete dela era noutro edifício, mas ele nunca mais a esquecera, guardava uma dívida de gratidão para com ela e nunca lhe agradecera… era esta a ocasião!
Quando a professora saiu da sala, depois de lançar o seu voto na urna, David pediu licença aos restantes membros, escusou-se por uns breves instantes, levantou-se e foi-lhe no encalce.
‘Professora Angélica, Professora… posso dar-lhe uma palavra???’
De braço dado com o rapazinho, ela estacou, voltou-se e respondeu, com a sua frase habitual:
‘Desculpe! A sua cara não me é estranha, mas não estou a ver…’
‘Professora, sou o David Costa, do colégio… é natural que já não me reconheça… eu sim, não a poderei esquecer! Não se lembra de um dia entrar na capela do colégio e encontrar encolhido e escondido num canto, a chorar, um rapazito da segunda classe, com os calções rotos? Era eu! E a professora foi ter comigo, percebeu o que se tinha passado, tirou-me o pulôver que eu tinha vestido, amarrou-o à minha cintura para tapar o rasgão e levou-me ao seu gabinete? Conversou comigo enquanto eu em cuecas me sentava numa cadeira, abriu a sua mala, tirou uma agulha e linha, coseu-me os calções, secou-me as lágrimas, ofereceu- me um chocolate, e resolveu-me aquele problema que para mim, com sete anos, era uma verdadeira tragédia??? Não tinha cara para ser gozado por todos com os calções rotos no ‘fundo das costas’! Tinha caído a jogar futebol e uns colegas mais velhos tinham feito muita troça…e eu fugi para me esconder no local mais improvável…’
A professora Angélica sorriu, o neto riu-se daquelas coisas sem importância e David abraçou a velha professora com um enorme carinho, quando ela lhe respondeu que tinha uma vaga ideia desse episódio… (‘Sim, sim, ora, ora, uma coisa sem importância…’).
‘Mas a professora acredita, que fiquei sempre a pensar que não tinha sabido agradecer-lhe? E ainda me lembro de a professora me dizer que era má costureira, mas os calções ficaram óptimos e pude voltar para a sala de aula sem ninguém perceber… nessa noite, só contei à minha mãe…’
À despedida, Angélica agradeceu-lhe a simpatia daquele reencontro inesperado e logo ali trocaram contacto telefónico, para combinarem um jantar em casa de David…
No regresso a casa, David contou à mulher os resultados da sua mesa de voto… como a proximidade dos resultados dos dois principais partidos o preocupava, a surpresa de uma terceira força em crescimento, mas o que mais o entusiasmara mesmo nesse longo dia tinha sido o reencontro com a velha professora Angélica… a sua salvadora… e contou-lhe aquela recordação de infância.
(Coisas pequenas sem importância?
Não, na verdade, naquele dia tão distante David aprendera para sempre que há coisas pequenas com muita importância!)