Conto: a Viagem
Era uma viagem de sonho! O cruzeiro desejado… o passeio prometido… uma outra lua-de-mel que ambos planeavam desde que os filhos haviam crescido e saído de casa…
‘No próximo ano, será o presente dos teus 65 anos!’, prometera Virgílio, sabendo como Aninhas desejava tanto visitar Itália e Grécia! Passar por Malta, talvez dar um salto a Ischia e Capri… e…
‘Querida, não nos foi possível até agora, mas celebraremos os nossos 50 anos de casados e os teus 70 anos num cruzeiro ao Mediterrâneo! Prometo-te… palavra de Virgílio!’
E Aninhas sempre sorria e pensava que só acreditava mesmo quando um dia se visse a bordo, olhando a linda Lisboa a partir do Tejo… no seu íntimo estava muito céptica…
E a saúde de Virgílio? Depois das operações e da quimioterapia recente, ficara tão fragilizado… fora as despesas todas inesperadas… como voltariam a ter dinheiro para esse cruzeiro?
Na verdade, lembrava-se bem, como algum tempo atrás tinham quase tudo preparado e viagem escolhida, quando aparecera a inesperada doença…
Agora porém, aproximava-se o grande dia!
Desta vez, finalmente, estava prestes a concretização do sonho…
Naquela tarde, antevéspera do embarque, já com mala prontas e despedidas feitas, Virgílio e Aninhas foram mais uma vez, como era seu costume, lanchar no café-pastelaria Bing Bang! Todos ali os conheciam e estimavam…
Às cinco da tarde, ali estavam eles a sair do seu carro antigo – um ‘ovinho’ branco e pequenino de outros tempos! – ela, baixinha, gordinha, com seu cabelo pintado de preto, apanhado atrás numa ‘banana’, face muito rosada cheia de pó de arroz e lábios pintados de vermelho vivo, sempre bem arranjada e com saltos de tacão alto; ele, de cabeça rapada, bigode aparado, lenço ao pescoço e óculos escuros de aviador, um pouco mais alto do que ela, ambos parecendo saídos de um filme de Hollywood, ou de uma revista dos anos 60!
E arrumado o carro, lá se foram sentar na mesa habitual… para beberem o seu chá de menta, dividirem irmãmente a sua torrada com pouca manteiga e comerem um pastel de nata também a meias, (por causa da diabetes), como todos os dias faziam.
O empregado mais antigo – o Zé Ferreira – tinha especial amizade por aquele casal. Conhecera-os quando se tinham casado e tinham vindo viver para aquela zona. Vira quase os seus três filhos nascer e crescer, depois o casal mudara de casa e estivera ausente durante anos, mas agora bem mais velhos e reformados, tinham voltado a frequentar aquele café – pastelaria onde ele trabalhava desde miúdo.
E não se esquecia que devia aquele emprego precisamente aquele casal!
Em criança, o Zé Ferreira vendia raminhos de violetas com o avô à porta da igreja da zona ao domingo e Aninhas e Virgílio achavam- lhe graça. Sempre lhe compravam dois raminhos e por vezes, davam- lhe roupa e comida, conversavam com o avô e iam acompanhando o seu crescimento.
No fim da instrução Primária, sabendo das graves dificuldades económicas daquele avô e neto, que estavam a viver na rua, tinham mexido céus e terra e tinham- lhes arranjado uma casa da Camara através da Junta de Freguesia, e mais tarde, um trabalho para o Zé Ferreira naquele café da esquina.
E naquela tarde, antevéspera da viagem, ali estavam eles à hora do chá. O empregado já os esperava e rapidamente os veio servir.
Naturalmente, com um entusiasmo quase infantil, Aninhas e Virgílio contaram-lhe que estavam de partida para a viagem há tanto sonhada… Zé Ferreira ouvia- os, divertido e com ternura. Sabia quantas adversidades tinham atravessado – a dificuldade para terem filhos, a crise do desemprego de Virgílio, a sua doença – e tinha-lhes grande amizade! Não podia esquecer como o tinham ajudado desde pequenino… e ao seu avô!
À despedida, deu um beijo à D. Aninhas e um forte abraço a Virgílio, dizendo- lhes: Desta vez não pagam! Sou eu quem oferece o bolinho, a torradinha e o chazinho! É um prazer! E quando voltarem venham contar as aventuras e mostrar as fotografias! Cá os esperamos! Boa viagem!
Contudo, como diz o povo, ‘o homem põe e Deus dispõe…’ Por razões desconhecidas, nessa noite o inesperado aconteceu: houve um curto-circuito nas escadas do velho prédio onde viviam, e deflagrou um grande incêndio.
Quase sem saberem como, Aninhas e Virgílio viram-se na rua com seus vizinhos, todos apenas com a roupa que tinham vestida… rodeados de bombeiros, ambulâncias e muitos curiosos nas janelas fronteiras; pouco depois, chegavam os seus filhos alertados por telemóvel.
Era visível a preocupação, o susto e o desgosto nos seus rostos!
Entre soluços e lágrimas, abraçada ao marido e aos filhos, Aninhas não parava de repetir:
Adeus casa, adeus viagem, adeus tudo… Que vai ser de nós???
Querida Aninhas, não chores! Tudo tem solução… já recomeçámos noutras ocasiões tão difíceis… virão dias melhores! Como é aquele salmo que tu gostas tanto de rezar…? Vem, reza comigo: ’ ainda que tenha de passar por vales tenebrosos nada temo, porque o Senhor está comigo… o Senhor é meu Pastor…!’