Comparar o que vejo com o que imaginei
Caminhava pela praia quando vi uma boia de pesca próxima da margem.
Esperei que as ondas a aproximassem e me acheguei. Estava ao alcance da mão quando pisei em algo e receei que me machucara. Me desvencilhei da linha e puxei a boia. Logo saiu da água uma chumbada e uma isca artificial, simulacro de um camarão, trespassada por um senhor anzol.
Recolhi tudo e livrei a praia de um entre sabe Deus quantos perigos submersos. Santa boia, que no primeiro momento julguei livre, leve e solta.
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No terço final da existência, é quase inevitável olhar pra trás e comparar o que vejo com o que um dia imaginei.
É bom lembrar dos amigos e colegas, com alguns dos quais tenho contato quase diário por conta das facilidades de comunicação à distância.
Quando penso na escola marista, onde cumpri o ciclo primário, a primeira coisa de que lembro era a convivência entre as classes sociais, com disparidades sopitadas pelo uniforme e sobretudo pela pregação religiosa.
Daquela turma, da qual me despedi aos onze anos, resultaram funcionários públicos, militares, carteiro, bancários, médicos, advogados, técnicos, fotógrafo, comerciantes…
Lá pelos vinte anos tomei um ônibus com destino a Montenegro. O motorista era um ex-colega e de pronto nos reconhecemos. Bem sucedidos, ou não, penso que quase todos seguiram o bom caminho.
Soube que dois se envolveram com drogas, um dos quais recuperou-se depois de muita luta. Um terceiro teria desviado dinheiro de um banco. Descoberto, desapareceu da cidade.
Não tenho a intenção de inventariar carreiras, até porque nos servimos delas para a realização pessoal e o sustento dos nossos. O que importa é que a grande maioria teve uma existência digna.
Mesmo os que se afastaram de nossa raiz religiosa reconhecem o valor do que haurimos naquelas salas de aula. Basta lembrar que rezávamos a cada início de manhã.
Desde então as águas correram, a educação religiosa perdeu terreno em nome do venenoso laicismo e o que vemos é um país que patinou e agora está mais do que nunca dividido. Nem quero contabilizar os dramas que temos de enfrentar. Não tenho disposição pra tanto e quem me lê não teria paciência. É aborrecido demais.
Educação, saúde pública, políticos, justiça, facções criminosas, roubalheira, impunidade,… Não há um tema sequer que nos encha de júbilo e o que mais entristece é a perda da esperança. Perdemos.
Dias atrás tivemos a informação de que uma cooperativa gaúcha será absorvida pelos chineses. As opiniões se dividem. Coloca-se em dúvida a competência dos gestores.
Um contador me disse de sua convicção de que deve ter havido malversação também. Pena. Qual a solução? Será negociada com empreendedores nacionais? Parece que não. Aí vem os chineses, que já dominam a distribuição de energia elétrica no estado.
Um conhecido, que se diz nacionalista, acrescentou outro caso de cooperativa que deu com os burros n´água, no sul do estado, e confessou que pouco se lhe dá se nossas empresas forem assumidas por espanhóis, chineses, ETs,…
Foi a gota d´água para extravasar o copo: somos uma geração fracassada. Que se preocupou com sua vidinha, suas vantagens, seus benefícios, seu exibicionismo e não fez diferença.
Nossa carência de grandes homens é a boia que sobrenada no mar de nossa mediocridade.
A linha histórica presa a ela esconde os anzóis em que pisamos.
Na manhã seguinte à descoberta dos anzóis caminhei na beira do mar à procura de siris. Tinha como objetivo disponibilizar um de meus calcanhares para que um deles o atacasse com seus tentáculos.
Encontrei dois, separados por algumas dezenas de metros. Estavam entre a areia e as ondas, como se não houvessem ainda decidido o rumo a seguir.
Nenhum deles atacou com vigor, me fazendo crer que a largura do calcanhar era excessiva para o exercício de seu atraque máximo ou que estavam em fim de carreira.
Penso que a sociedade brasileira se assemelha a estes crustáceos, porquanto não atacamos o calcanhar de Aquiles de nossas centenárias mazelas.
Seja porque seu tamanho desencoraja, seja porque estamos abúlicos.
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Diante das decisões esdrúxulas que temos assistido, sem que as instituições se oponham, é preciso buscar no passado exemplos que nos inspirem e possam encorajar os timoratos. Uma destas figuras é Sobral Pinto, que recusou um assento na corte máxima.
Quando neste momento cogita-se que o advogado de um condenado em todas as instâncias, que foi ungido na presidência do país, havemos de buscar os faróis de nossa história, como Sobral Pinto: “no fim da carreira recusou convite do presidente Juscelino Kubitschek para ser ministro do Supremo Tribunal Federal, para que não supusessem que sua defesa da posse do presidente e de seu trabalho como defensor da Liga da Legalidade fosse movida por interesse pessoal”. Este trecho foi extraído do portal de um ramo da Ordem dos Advogados do Brasil.
A indicação do advogado que defendeu o ex-presidiário é tão absurda que o silêncio da classe jurídica, da imprensa e dos homens de bem promete assassinar nossas esperanças de um país digno.
Dario de Almeida Magalhães, em seu “Figuras e momentos”, enalteceu Sobral Pinto porque mostrou em seu tempo “que a consciência nacional não emudeceu totalmente sob a escuridão”.
Onde andam os luminares do país? Refestelados por privilégios? Escondidos sob a cama de seus medos?
Magalhães acrescenta que Sobral Pinto tornou-se um homem livre ao libertar-se da escravidão do dinheiro e ressalta a estupenda lucidez do famoso advogado: “Não lhe basta o Estado de Direito; reclama o Estado de Justiça”.
Nossos dramas são fruto de egoísmo, omissão, miopia e sobretudo da impunidade. E nosso resgate precisa do retorno às nossas raízes, substituindo os homens que diuturnamente perseguem o bezerro de ouro e as gloríolas por jovens com formação cristã.
A santa formação que abandonamos por influência das ideias iluministas que, ao fim e ao cabo, apagaram a luz.