Cartas a Guiomar: O pecado (16)

 Cartas a Guiomar: O pecado (16)

Querida Guiomar,

Passamos agora à segunda parte das tuas dúvidas sobre a matéria do sacramento da penitência.

Podemos pecar, ou seja, violar os mandamentos de Lei de Deus, por pensamentos, palavras, obras e omissões, como dizemos no acto penitencial que se reza no começo da Santa Missa. Podemos pecar gravemente, matando a vida da graça na nossa alma, ou venialmente, enfraquecendo essa vida em nós. Podemos pecar com o corpo ou somente com a alma, embora todos os pecados venham da alma, que é a sede da vontade. Porque o pecado – nomeadamente o pecado grave ou mortal – é uma decisão pessoal, uma decisão que só tomamos porque queremos (embora possamos cometer, e de facto cometamos, pecados veniais por fraqueza). Para haver pecado grave, têm de estar simultaneamente reunidas três condições: matéria grave, plena advertência e consentimento pleno (já explico!).

São matérias graves de pecado todas as relacionadas com a adoração devida a Deus (cometer sacrilégios, jurar falso, amaldiçoar a Deus, faltar à missa ao domingo), todas as relacionadas com a protecção da vida humana inocente (matar deliberadamente um inocente), todas as relacionadas com a castidade (os pecados enunciados contra o sexto e o nono mandamento). A matéria dos outros mandamentos não é sempre e imediatamente grave; nestes casos, a gravidade do pecado correspondente depende do tipo de actos que são cometidos. Por exemplo, responder mal aos pais não é pecado mortal (mas é venial); já responder aos pais sistematicamente com violência, amaldiçoá-los, explorá-los e em geral maltratá-los é pecado mortal.

A segunda condição para haver pecado grave é haver plena advertência. Ou seja, a pessoa tem de saber que determinada acção é um pecado grave e tem de ter consciência de que está a cometer esse pecado. Por exemplo, eu sei que matar um inocente é pecado, e sei que a estricnina mata, de maneira que se der estricnina misturada no leite à minha bisavó com o objectivo de a matar, estou a cometer um pecado mortal. Mas, se lhe misturar estricnina no leite pensando que é açúcar, e ela morrer, não cometi nenhum pecado, nem sequer venial, porque não sabia que estava a dar-lhe estricnina, nem queria matá-la. E o mesmo acontece se lhe der estricnina não sabendo que a estricnina mata (podia julgar que se tratava de um fortificante, por exemplo).

Portanto, é preciso saber o que se está a fazer. Mas atenção, não saber quando se podia (e devia) ter sabido não é desculpa! Quer dizer, não podes agora tapar os olhos e os ouvidos e não querer saber mais nada, com a desculpa de que quem não sabe não peca; porque quem não sabe mas devia saber peca também! Os cristãos têm o dever estrito de formar a sua consciência e de tomar conhecimento das coisas a que estão obrigados pela Lei de Deus. Além disso, repara: o pecado é um defeito, e um defeito que deixa sequelas; portanto, mesmo que a gente não tenha consciência do que está a fazer, continua a ser um mal que se faz, aos outros e a nós próprios. Por outro lado, o pecado cria hábitos, maus hábitos. Nós já temos uma tendência enorme para a asneira quando tentamos portar-nos bem; quando não tentamos portar-nos bem, então, essa tendência dispara: de cada vez que matamos uma bisavó, mesmo não sabendo que matar é pecado mortal, ganhamos mais tendência para matar a seguinte – e, quando se nos esgotam as bisavós, passamos naturalmente às avós, o que é francamente pouco saudável.

Finalmente, temos de consentir em cometer o pecado. Ninguém peca quando é obrigado a cometer determinada acção, mesmo que essa acção seja um pecado e que a pessoa saiba que o é. Uma criança de dez anos cujos pais a impedem de ir à missa ao domingo não está a pecar. Ir à missa ao domingo é matéria grave, ela sabe que tem de ir à missa ao domingo, mas não pode contrariar a vontade dos pais porque ainda não tem autonomia para isso. O mesmo se pode dizer de um adulto de vinte e oito anos que foi raptado e está amarrado e amordaçado no quarto de um hotel abandonado; uma pessoa que se encontra nestas condições, embora seja normalmente autónoma, está impedida de exercer a sua autonomia, e portanto não peca.

A melhor maneira de evitar o pecado é não nos colocarmos em situação de o cometer: não termos estricnina em casa se temos uma bisavó inconveniente; não planearmos saídas de fim-de-semana que nos impeçam de ir à missa; não alimentarmos a cobiça por determinados objectos, de maneira que, a certa altura, estamos dispostos a fazer seja o que for para conseguir tê-los; não pensarmos mal dos outros; não vermos filmes inconvenientes; não irmos a festas onde já sabemos que toda a gente vai beber demais, etc.

Temos também a obrigação de não contribuir para que os outros pequem – ou melhor, de fazer tudo o que está ao nosso alcance para evitar que isso aconteça, porque todos formamos parte do mesmo corpo místico e o pecado de um afecta-nos a todos. Por exemplo, uma pessoa que combina com outra levarem cábulas para um exame não só está a pecar (venialmente) contra o oitavo mandamento, como está a induzir outra a fazê-lo também. Uma pessoa que anda vestida de forma indecente, exibindo partes do corpo que estão destinadas a permanecer resguardadas, pode estar a suscitar pensamentos e desejos indevidos noutras pessoas, induzindo-as a pecar (mortalmente) contra o nono e o sexto mandamento. E isto são só exemplos.

Na raiz de todos os pecados que cometemos estão os chamados pecados capitais, os sete grandes vícios pelos quais somos tentados e que estão na origem de todos os outros; são eles: a soberba, a gula, a avareza, a preguiça, a ira, a luxúria e a inveja. A soberba faz-nos ter uma consideração muito exagerada da nossa própria importância, considerar que somos iguais a Deus e que temos direito à adoração que só a Ele é devida. É um pecado muito comum, umas vezes sob formas mais subtis, outras sob formas mais evidentes; foi o pecado dos anjos e foi o pecado dos nossos primeiros pais. A gula faz-nos ter um desejo exagerado dos prazeres ligados ao paladar; a luxúria faz-nos ter um desejo desordenado dos prazeres ligados ao sexo. A gula e a luxúria estão ligadas aos dois instintos mais básicos e mais intensos dos seres humanos: o instinto de conservação, que se ordena à sobrevivência do indivíduo; e o instinto da procriação, que se ordena à sobrevivência da espécie. A avareza cria em nós a necessidade de acumular bens materiais; o avaro é aquele que acha que não tem nada enquanto não tem tudo. A inveja faz-nos querer os bens das outras pessoas; o invejoso é aquele que não tem que chegue enquanto não tem o que os outros têm. A preguiça dificulta-nos a produção laboral. A ira faz-nos perder o controlo de nós próprios quando somos contrariados.

Os sete pecados, ou sete grandes tipos de pecado, estão presentes em toda a gente, praticamente até à morte, embora uns se manifestem mais numas pessoas, outros noutras. A nossa luta consiste precisamente em ir contrariando, a pouco e pouco, as suas manifestações, a fim de nos parecermos mais e mais com Jesus. A soberba combate-se com a humildade, a gula com a temperança, a avareza com a liberalidade, a preguiça com a diligência, a ira com a paciência, a luxúria com a castidade e a inveja com a caridade – as sete virtudes que contrariam directamente os sete vícios, e que ganhamos muito em praticar. Mas já lá vamos!

Ufa, falar do pecado mói por dentro!

*Maria José Figueiredo

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