Cartas a Guiomar: A criação do homem e o pecado original (5)
Querida Guiomar,
Estavas ontem a dizer que o mais irritante de tudo é a tendência que os seres humanos têm para a asneira. Chesterton concordaria contigo; dizia ele que o pecado original é daqueles dogmas em que não é preciso ter fé para acreditar.
Deus criou o homem e a mulher, Adão e Eva, e instalou-os no Paraíso. E o Paraíso era… um paraíso, com todo o género de plantas e animais, e solzinho e frescura! E além disso concedeu-lhes aquilo a que se chama a graça santificante, que é a participação na intimidade da Santíssima Trindade; criou-os para participarem na vida divina, e fê-los participar nessa vida logo desde o princípio. Adão e Eva viviam com Deus (embora ainda não vivessem no céu, para onde iriam depois de terem passado um certo tempo neste Paraíso).
Mas Deus também lhes deu uma série de dons que estavam acima da sua natureza, uma série de super-dons (que faziam de Adão e Eva super-homens): viviam em extrema harmonia com tudo aquilo que os rodeava (no Paraíso não havia mosquitos – ou, se havia, não picavam); tinham uma capacidade cognitiva muito superior à nossa, que lhes permitia adquirir conhecimentos sem esforço; controlavam as paixões sem dificuldade nenhuma (não se irritavam um com o outro, não cediam à preguiça, não repetiam três vezes a sobremesa); e (a cereja no cimo do bolo!) estavam isentos do sofrimento e da morte. Portanto, os nossos primeiros pais não sofriam nem morriam, e eram extremamente felizes, e por boas razões. Nada mau!
Mas tudo isto parece muito fácil, não é? Não dá luta, não é? Pois não, Deus também achou que não, e foi por isso que lhes impôs uma condição: não comerem da árvore do bem e do mal. Deus queria que Adão e Eva O amassem porque queriam! Não queria que O amassem só porque estava na natureza deles, e na super-natureza deles, não queria que O amassem só porque não tinham alternativa, por assim dizer – e quem é que quer ser amado assim? Mais do que isso, se Adão e Eva amassem a Deus só porque não tinham alternativa, mereciam menos a felicidade que tinham, e portanto, eram menos felizes. Quem ama quer amar porque quer! Portanto, Deus deu aos nossos primeiros pais a oportunidade de O amarem porque queriam, pela única e simples razão de que queriam – e quem é que não quer amar assim? E a condição que Deus lhes impôs foi a seguinte: para provarem que Me amam, não toquem nesta árvore. Podem comer do que lhes apetecer, fazer tudo o lhes apetecer, mas no fruto desta árvore não podem tocar.
Acontece que o demónio tem um ódio de morte a Deus e tinha uma inveja de morte dos nossos primeiros pais, porque eles tinham o que ele tinha perdido: a amizade de Deus (como veremos na próxima carta). De maneira que se insinuou no Paraíso (o demónio é insinuante, é por isso que aparece sob a forma de uma serpente) e pôs-se à conversa com Adão e Eva, a ver se os levava; e levou. O episódio do pecado de Adão e Eva é um catálogo de asneiras humanas.
A primeira asneira foi dar conversa ao tentador. Não se dá conversa ao demónio! O demónio é muito mais inteligente do que nós (já era mais inteligente que Adão quando ele era um super-homem), de maneira que consegue sempre dar-nos a volta. Quando temos uma tentação, não ficamos a medir se é grande, se é pequena, se é grave, se é ligeirinha, se aguentamos cair nesta e não cair na próxima! Quando temos uma tentação, fugimos imediatamente! São Pedro diz, numa das suas cartas, que o demónio é como um leão que ruge; ora, com um leão não se fica a discutir razões – foge-se dele a grande velocidade!
A seguir, o demónio garante a Adão e Eva que Deus tem receio deles, que Deus tem receio de que eles se tornem como Ele! Imagina! Deus – Deus! – tem receio de que Adão e Eva Lhe tirem o tapete de baixo dos pés. E eles, que conheciam a Deus razoavelmente, acreditam! Mas passa pela cabeça de alguém que Deus tenha receio de que outra entidade qualquer se torne como Ele? Não, não passa pela cabeça de ninguém. Não é uma história de doidos? É uma história de doidos. E, no entanto, os nossos queridos primeiros pais acreditaram.
Mas acreditaram porque queriam acreditar, evidentemente. Porque logo a seguir o demónio sugeriu-lhes que, se comessem da tal árvore de que Deus lhes tinha proibido de comer, seriam mesmo iguais a Ele! Ora bem! A estratégia resultou na perfeição, porque é isso mesmo que nós queremos! A nossa grande tentação é essa: sermos como Deus, ou seja, sermos o centro do universo, o centro de todas as atenções, e sermos nós a decidir o que é bem e o que é mal; por nós, o universo girava à volta do nosso umbigo (é a tentação da soberba, que foi também o pecado do demónio). Por Adão e Eva também, e foi isso que deu cabo de tudo.
Finalmente, quando Deus lhes vem perguntar o que foi que se passou, o que fazem Adão e Eva? Tomam a clássica atitude humana: atribuem as culpas a outro. Adão diz que a culpa foi de Eva, Eva queixa-se de que a culpa foi do demónio, e assim a culpa não foi de ninguém. A desculpa não pegou, naturalmente; é por isso que Deus é Deus, porque com Ele estas desculpas não pegam. Adão e Eva foram expulsos do Paraíso, e foram muito bem expulsos. E nós com eles. Foi o pecado original.
Atenção! Esta história não é uma metáfora! Quero eu dizer, pode ter sido com uma pantera em vez duma serpente, ou não ter sido com bicho nenhum; pode ter sido um pêssego em vez duma maçã, ou não ter sido fruto nenhum – esses elementos, sim, são narrativos; mas que houve um paraíso, um primeiro casal, uma proibição de Deus e uma desobediência na sequência de uma tentação do maligno, isso houve sem dúvida nenhuma! E a nossa lamentável tendência para a asneira, com que tu tanto te irritas, cá está para o provar.
Ainda não acabámos o pecado original, mas hoje ficamos por aqui.
*Maria José Figueiredo