A minha avó pede desculpa
«Os pesadelos são criaturas vivas, pequenas nuvens escuras de insegurança e angústia que se esgueiram entre as casas quando toda a gente está a dormir testando as portas e janelas até encontrarem um sítio por onde entrar e começar a criar confusão (…) Não é possível matar um pesadelo, mas é possível assustá-lo. E não há nada que os pesadelos temam mais do que leite e bolachas.
E os medos?
Os medos são pequenas criaturas ferozes da Terra-de-Quase-Acordar, com pelo áspero que, por mera coincidência, se parecem bastante com uma bola de cotão azul tirada do filtro de uma máquina de secar; se lhes dermos a mais pequena oportunidade, eles saltam, mordiscam-nos a pele e arranham-nos os olhos. (…)
É necessário muito cuidado a lidar com os medos, porque as ameaças só os fazem crescer ainda mais (…) Os cavaleiros fizeram a única coisa que se pode fazer com os medos: riram-se deles. Gargalhadas sonoras e desafiadoras. E todos os medos se transformaram em pedra, um após outro».
Se se identificar com este tipo de escrita pontilhada de metáforas onde são abordadas questões profundas através da leveza de um mundo imaginário para onde nos levam uma menina de 7 anos e uma avó fora da caixa então é muito provável que aprecie este livro.
Este livro da autoria de Fredrick Backman e edição da Porto Editora, desmonta a imagem tradicional de uma avó ao apresentar-nos a avó de Elsa, uma mulher completamente louca que foge do hospital onde está internada, conduz sem carta de condução, pede isqueiros à neta, assalta o jardim zoológico à noite, atira lama e cocó à cara de um polícia e dispara da varanda de casa uma arma de paint ball às testemunhas de Jeová que lhe tocaram à porta, vestida apenas com um robe a esvoaçar, sem nada vestido por baixo. É por isto, pensa Elsa, que as pessoas acham a Avozinha atrevida para a idade.
Também julgam que a Avozinha é louca, embora na verdade ela seja um génio. Simplesmente, é também um bocadinho doida. Foi médica, ganhou prémios, vários jornalistas escreveram artigos sobre elas e esteve nos sítios mais terríveis do mundo quando todas as outras pessoas de lá saíam. Salvou vidas e combateu o mal em todos os cantos da Terra. Tal como os super-heróis.
Mas esta avozinha doida tem o essencial para ligar netos e avós: uma relação de cumplicidade e afectos, povoada de sonhos e rituais que ajudam à evasão de um quotidiano por vezes demasiado duro e stressante para as crianças pequenas.
Conta as melhores histórias de sempre e Elsa deixou de ter medo de adormecer, desde que a avó começou a levá-la para a Terra- de- Quase Acordar. Quando os pais de Elsa se divorciaram a avó falou-lhe pela primeira vez nesta Terra que criou.
«Assim, quando o Papá se foi embora e andavam todas tristes e cansadas, todas as noites Elsa saía de casa pé ante pé e atravessava o patamar, descalça, até ao apartamento da avozinha; depois, ela e a avozinha entravam no grande roupeiro que nunca parava de crescer, semicerravam os olhos e lá iam elas». (….)
Ter uma avó é como ter um exército. É o derradeiro privilégio dos netos: saberem que têm alguém sempre do seu lado seja quais forem as circunstâncias. Mesmo quando estão errados.
Uma avó é, ao mesmo tempo, uma espada e um escudo».
A menina tem 7 anos e é considerada “diferente” pela sua maturidade. Na escola é alvo de bullying mas esta palavra nunca é usada no livro. São descritas as situações de perseguição e as causas com um realismo que leva à reflexão: Elsa já vai conhecendo os perseguidores da escola e como funcionam.
«Alguns só perseguem crianças que se revelam fracas. Outros fazem-no apenas pela excitação da caça; nem sequer batem nas vítimas quando as apanham, só querem ver o terror nos seus olhos. E depois há alguns…que lutam e perseguem as pessoas por uma questão de princípio, já que não suportam que alguém discorde deles. Sobretudo se esse alguém for uma pessoa diferente».
A avozinha costumava dizer que só as pessoas diferentes podem mudar o mundo. Nunca uma pessoa normal mudou porcaria nenhuma.
Sobre as dificuldades de concentração que, alegadamente, Elsa terá, na opinião dos professores, a Avozinha acha que as pessoas que pensam devagar acusam sempre as que pensam depressa de terem problemas de concentração.
«Os idiotas não conseguem perceber que os não idiotas já despacharam um pensamento e estão a avançar para o seguinte antes deles. É por isso que os idiotas têm sempre tanto medo e são tão agressivos. Não há nada que os assuste mais do que uma rapariga esperta».
Esta menina diferente apercebe-se das características da personalidade do pai: O papá não gosta de se divertir. As coisas divertidas deixam-no nervoso. Uma vez, quando estavam de férias, era Elsa ainda pequena, divertiram-se tanto que o papá teve de tomar dois ibuprofenos e deitar-se a tarde toda a descansar no hotel. Éassim, com este enquadramento leve e pela voz de uma criança que é abordada neste livro a misantropia e tantos, tantos outros assuntos profundos que nos fazem pensar.
Nunca ninguém diz morta. Todos dizem que a Avozinha partiu ou que a perderam.
A avó de Elsa morre com cancro após uma tarde no hospital em que ambas jogam monopólio e comem bolos de canela. Nessa tarde a avó dá-lhe uma carta e uma chave e encarrega-a de iniciar uma caça ao tesouro: pede-lhe que entregue uma série de cartas onde pede desculpa às várias pessoas que habitam o prédio. Um prédio que só após a sua morte veio a saber-se que era dela e onde os habitantes são pessoas que ela ajudou durante toda a sua vida.
A herança que deixou à neta foi este prédio – «Cuida do castelo e dos teus amigos- e a missão de fundar um sétimo reino». A Terra- de-Quase-Acordar concebida pela avozinha, tem seis reinos: Miamas que significa eu amo, onde Elsa e a Avozinha passam a maior parte do tempo e onde têm origem todas as fantasias e histórias de encantar; Mirevas que quer dizer eu sonho; Miaudacas, eu ouso; Mimovas, eu danço; Miploris, eu choro e onde se deixam as tristezas; Mibatalos, eu luto e do qual só há escombros. É sobre estes escombros que Elsa deverá construir Mipardonus, o reino do perdão – eu perdoo.
Uma herança de amor como todas as avós conseguem deixar aos netos mesmo quando são diferentes e não seguem o trilho.
Uma herança que vai além dos cheiros das suas casas que perduram na memória para todo o sempre.
Se conseguir ler as primeiras páginas que, ao contrário do que deve ser uma narrativa, não são as que mais prendem o leitor, conseguirá entrar num reino de afectos, amor, perdão, inclusão e verdade sem pseudo moralismos e com a leveza que só a magia alcança. Porque, «Nem todos os monstros eram monstros a princípio. Alguns são monstros nascidos da dor. E quando odiamos aquele que odeia, corremos o risco de nos tornarmos como aquele que odiamos».