Novos Tempos: Entre o direito e a vida

França e Mónaco em contraste
A Europa viveu, nos últimos meses, dois acontecimentos simbólicos que revelam caminhos opostos no modo de compreender o aborto no espaço público.
Na França, a decisão histórica de inscrever o aborto como um direito constitucional foi celebrada como vitória do progressismo jurídico.
No Principado do Mónaco, pelo contrário, o príncipe Alberto II usou o direito de veto para bloquear a legalização plena do aborto, defendendo a proteção da vida nascente como fundamento ético da identidade do principado.
A proximidade geográfica dos dois Estados contrasta com a distância ideológica que os separa nesta matéria.
A «filha primogénita da Igreja», a terra dos Francos, tem dois rumos contrastantes.
Na França
A incorporação deste suposto direito na constituição francesa não é apenas uma mudança legislativa; é uma mudança antropológica.
Ao elevar o aborto ao mais alto nível da hierarquia jurídica, o Estado transmite a ideia de que a interrupção voluntária da gravidez não só é permitida, mas simbolicamente protegida como expressão máxima da autonomia individual.
Trata-se de uma vitória para aqueles que consideram que a maternidade deve ser sempre uma escolha reversível até certo ponto da gestação.
Porém, ao inscrever o aborto na Constituição, cria-se também um novo parâmetro de pressão social: qualquer discordância passa a ser vista como oposição a um “direito fundamental”.
O espaço para a objeção de consciência — médica e institucional — tende a reduzir-se, e o debate ético é facilmente substituído por slogans ideológicos.
No Mónaco
No extremo oposto, o Mónaco apresenta um gesto raro na Europa ocidental: a afirmação de que a lei não deve transformar em normal aquilo que é, no mínimo, um drama humano.
O veto de Alberto II não resulta de uma visão punitiva, mas de uma convicção moral segundo a qual a sociedade deve procurar proteger a vida mais frágil e acompanhar a mulher em dificuldade, sem apresentar o aborto como solução fácil ou inevitável.
Num continente onde a pressão cultural tende a uniformizar legislações e valores, a posição monegasca mostra que uma pequena nação pode, ainda assim, afirmar uma identidade ética própria.
A Igreja Católica
A visão católica, frequentemente caricaturada, encontra aqui um contributo para a reflexão pública. A Igreja não ignora a dor, o medo, a violência ou o abandono que podem marcar uma gravidez inesperada.
Mas lembra que o valor da vida humana não depende do estágio de desenvolvimento, nem do desejo ou da circunstância.
Ao defender a dignidade dos nascituros, a tradição cristã não proclama uma verdade “confessional”, mas uma intuição universal: a vida merece ser acolhida, não descartada.
O Papa Francisco repetiu muitas vezes que não se trata de “impor” doutrinas, mas de proteger os vulneráveis, inclusive a mãe, que muitas vezes vive o aborto em profunda solidão emocional.
Europa na encruzilhada
Entre a França e o Mónaco, a Europa vê refletida a sua própria encruzilhada: um continente que oscila entre a liberdade entendida como autonomia absoluta e a liberdade que inclui responsabilidade pelo outro.
A cultura contemporânea tende a afirmar direitos, mas raramente fala de deveres; enaltece escolhas, mas quase nunca acompanha quem sofre para escolher bem.
O debate sobre o aborto continuará a dividir opiniões. Mas é legítimo perguntar qual o tipo de sociedade que estamos a construir quando celebramos como conquista civilizacional a interrupção de uma vida que começa.
Talvez o contributo mais sensato da visão católica para o espaço público seja este: recordar que o progresso não se mede apenas por direitos proclamados, mas sobretudo pela capacidade de cuidar de cada pessoa, no ventre materno e para lá dele.

