Conto: Bertinho, o enjeitado

 Conto: Bertinho, o enjeitado

da Ecclesia

Fátima Fonseca, Professora

Em casa da Senhora D. Maria da Glória Santos, todos conheciam bem a história do Bertinho.

Desde criança, tinha a triste alcunha de ‘o enjeitadinho’, talvez por ser feio, sem graça, abandonado pelos pais, e ter ficado entregue ao cuidado da avó… os pais eram dois adolescentes que não se entendiam, nem tinham querido aquele filho… e o Bertinho por um triz não fora abortado.

Na verdade, escapara por milagre, por intervenção da avó, e quando pai e mãe desapareceram, fora ela que o fora buscar ao hospital e dele cuidara toda a vida com desvelo.

A avó do Bertinho era de facto, uma boa alma! Dizia muitas vezes que ‘ não se podia apagar um erro com outro ainda pior’ e que ‘ o bebé tinha direito à vida e não tinha culpa dos erros dos pais’…

Mulher simples, sofrida e muito trabalhadora, nascida e criada numa aldeia, viera para Lisboa, como tantas outras, aos 12 anos, ainda criança, para ganhar a vida, ajudar os pais e irmãos lá na terra, servindo em casa abastada; dali casara, tivera apenas uma filha e ao fim de muitos anos, viúva, já só trabalhava a dias em algumas casas, mantendo-se na casa da família Santos, no seu bairro, muito perto da pequena e modesta casa, onde vivia com o neto.

A avó do Bertinho levava-o em bebé para as casas onde trabalhava, e mais tarde já na Primária, continuava a levá-lo, para não o deixar sozinho, quando ele saía da escola. Recomendava-lhe juízo, boas maneiras, assoava-lhe o nariz para não andar ranhoso, penteava-lhe o cabelo rebelde e lavava-lhe a cara logo ali à entrada, na casa de banho, e depois mandava-o fazer os trabalhos de casa e não incomodar os senhores e os meninos.

Pouco a pouco, Bertinho ia conhecendo e brincando com os meninos das várias casas, quando eles o deixavam brincar com eles e com os seus brinquedos.

Alguns, porém, troçavam dele por ser tão feio e chamavam-lhe ‘Bertinho, o enjeitadinho’.

Contudo, em casa da Senhora D. Maria da Glória Santos, nunca tal acontecera, e ele sempre se sentira acarinhado e protegido por todos. Aliás, havia lá uma menina, a Luisinha, um pouco mais crescida do que ele que, ao contrário de outras crianças, de bom grado partilhava as suas bolachas e guloseimas com ele e com paciência e jeito o ajudava a fazer os trabalhos de casa, trabalhos que para ele eram verdadeiros quebra-cabeças.

Os anos passaram, a D. Maria da Glória morreu, os filhos cresceram, cada um seguiu a sua vida e a avó do Bertinho também faleceu, deixando -o sozinho na vida… a muito custo, este terminara o segundo ciclo preparatório e tentara arranjar os primeiros empregos… porém, o seu rosto feio, a falta de jeito para falar, a timidez e o seu aspeto não facilitavam … fora jardineiro, varredor de lixo, tivera algum trabalho na agricultura em altura de vindimas, também andara nas obras e ainda tivera uma vaga hipótese de ser segurança…, mas rapidamente o despediam, mal acabava a tarefa, ou o tempo de experiência, com ou sem motivo, e por fim viera parar à rua, onde agora ia tentando sobreviver…

Naquela tarde da ‘Marcha pela vida’ em Lisboa, Luísa – que vivia agora em Madrid onde era CEO de uma empresa multinacional, e por acaso, estava a passar uns dias de férias de Páscoa em Lisboa – resolveu juntar-se à Marcha. Era uma acérrima defensora da vida desde sempre!

Ao descer a Rua de S. Bento, em direção ao Parlamento, qual não foi o seu espanto quando de repente, Luísa viu Bertinho caminhando também no meio da multidão, e aproximando- se dele, chamou-o:

• ‘Bertinho, tu aqui? Que é feito de ti?’

• ‘A menina Luísa? Que bom encontrá-la…’ – e timidamente, todo corado, estendeu-lhe a mão.

Luísa continuava a ser a mesma, e sem mostras de vergonha, deu-lhe um abraço e beijou-o. Percebendo de imediato que a vida não lhe corria bem, quis saber da sua situação e Bertinho contou-lhe como tudo mudara desde a morte da avó, a única pessoa que o amara e dele cuidara. Era por causa dela aliás, que não falhava uma Marcha pela vida.

Apesar da sua pobreza, ele bem sabia que devia a sua vida e tudo o que de bom lhe acontecera à sua querida avó… e sentia-se grato por isso! De resto, dizia ele, estava muito confiante que qualquer dia a sua vida iria melhorar… alguma coisa lhe segredava, no seu íntimo, que a avó continuava a protegê-lo… e não o abandonaria….

Ao terminar a Marcha, Luísa levou-o a uma pastelaria próxima, deu-lhe de comer, deixou-lhe algum dinheiro e prometeu que iria tirá-lo da rua e arranjar-lhe um trabalho. Logo ali ficou combinado um novo encontro no dia seguinte naquele mesmo café.

Nessa noite, Luísa não descansou até arranjar solução! Agarrada ao telefone, mexeu céus e terra. Não queria voltar a Madrid e virar as costas sem ajudar o Bertinho! Falou com os irmãos e com vários amigos, conseguiu descobrir um quarto no bairro de Santos, onde Bertinho vivera, arranjou-lhe roupa oferecida, comida e artigos de higiene, e no dia seguinte, acompanhada por um dos irmãos, foi ter com ele ao café à hora combinada.

Depois, o irmão de Luísa levou o Bertinho ao quarto que haviam alugado para ele e falaram-lhe numa hipótese de fazer jardinagem para uma família amiga que precisava urgentemente de arranjar jardineiro.

Bertinho estava feliz e não sabia como agradecer-lhes… de imediato aceitou aquela proposta. Ainda por cima, se tudo corresse bem e gostassem dele, talvez pudesse mesmo mudar para uma pequena habitação existente nesse jardim e há muito não utilizada.

Bertinho não cabia em si de contente, e com os olhos rasos de lágrimas só queria beijar as mãos de Luísa e do irmão.

Nessa noite, sentada a bordo do avião para Madrid, Luísa sentia-se tranquila e feliz. No dia seguinte, estaria de novo mergulhada em trabalho e a preparar uma deslocação ao Dubai. Sabia que o irmão cuidaria de Bertinho e o levaria ao seu novo trabalho em casa de uns amigos de sempre, gente boa que por certo tratariam Bertinho com a dignidade que ele merecia. Não mais seria ‘o enjeitado’….

Em boa hora viera a Portugal naquela Páscoa e resolvera juntar-se à Marcha pela Vida! Estranha coincidência… Luísa viu as luzes de Lisboa, o Cristo-Rei iluminado… fechou os olhos, de repente sentiu um imenso cansaço ‘bom’ e adormeceu.

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