Confirmar ou não D. Afonso Henriques? II

 Confirmar ou não D. Afonso Henriques? II

Paulo Freitas do Amaral, professor de história

Em tempos de confusão sobre o passado, importa não só recordar, mas confrontar.

Há algumas semanas escrevi um artigo onde defendi que Portugal tem o dever moral e científico de confirmar, por via do ADN, se os restos mortais sepultados no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra pertencem de facto ao primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques.

O texto expunha a fragilidade documental que envolve o túmulo, as transformações arquitectónicas sofridas ao longo dos séculos, o papel da reconstrução pombalina e da reforma oitocentista, e sublinhava que, perante a ausência de provas físicas definitivas, seria prudente a aplicação de métodos científicos modernos, como o ADN, para clarificar uma questão que não é apenas histórica, mas simbólica.

Apontava também, com respeito, as reservas éticas e espirituais que esse gesto pode suscitar. A história não é apenas feita de arquivos, é feita também de silêncios e de ossos.

Desde então, várias pessoas perguntaram-me: mas isso nunca foi tentado?

A resposta é: foi. Poucos se recordam, mas em 2006, no rescaldo da reabertura dos túmulos dos reis de França em Saint-Denis e em pleno debate europeu sobre o uso do ADN em contextos históricos, o túmulo de D. Afonso Henriques esteve prestes a ser aberto.

A investigação estava a ser preparada por uma equipa de arqueólogos, com o apoio do IPPAR e do então diretor do Mosteiro, e contava com o conhecimento técnico necessário para proceder com rigor e discrição.

No entanto, a então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, proibiu a exumação. A ordem foi clara, invocando razões éticas e patrimoniais, mas também uma sensibilidade política quanto ao simbolismo do acto.

O processo ficou suspenso, sem que a opinião pública tenha sido plenamente informada. Desde então, o silêncio adensou-se e a oportunidade perdeu-se.

Este recuo em 2006 revela o quanto o Estado português se mantém ainda hesitante perante os seus próprios fundamentos.

A hesitação em saber se o corpo do rei fundador repousa, de facto, onde nos dizem que repousa, é sintoma de um país que teme ferir os seus mitos. Mas a História não exige reverência, exige verdade.

Não é por sabermos que D. Afonso Henriques existiu que devemos desistir de confirmar onde ele está. Pelo contrário, é por termos construído Portugal a partir do seu nome que temos o dever de cuidar da sua memória com os olhos abertos.

O debate que aqui retomo não é arqueológico, nem académico. É um debate sobre maturidade cívica.

Se os franceses podem abrir os túmulos dos seus reis em nome da ciência e da preservação, se os ingleses recuperaram os restos mortais de Ricardo III num parque de estacionamento para lhe darem sepultura digna, se os próprios italianos já investigaram os ossos de Dante e Galileu com pinças de luz, porque é que Portugal não pode aplicar a ciência ao túmulo do seu rei fundador? De que temos medo?

Não proponho profanações nem gestos mediáticos. Proponho apenas que o país esteja à altura da sua própria história. Que olhe para os seus túmulos com a humildade de quem procura compreender, e não apenas venerar. Que use a razão, sem deixar de ouvir o coração. Que não tema saber.

Se, em 2006, essa coragem faltou, que 2028 – ano em que se assinalarão 900 aos da existência de Portugal – possa ser diferente. Porque o futuro de Portugal não se constrói apenas em cima da fé, mas também em cima da verdade. E porque o túmulo do rei que fundou a pátria não pode ser apenas um altar. Tem de ser, antes de mais, uma certeza.

*Paulo Freitas do Amaral, Professor, Historiador e Autor

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