Voltar a Casa
Um dia pode acontecer um solitário regresso a casa. Sem a outra metade de nós, sem o abraço, a partilha, sem o olhar que deixa de cair sobre o nosso.
Andamos à volta de perguntas que vão ficando sem resposta. Questões que não encontram resolução dentro de nós: como o sentido da vida, do amor e da eternidade.
Atravessamos uma existência repleta de enigmas complexos. Quase sempre, tarde demais, refletimos sobre o tempo que nos é dado.
Percebemos que seguimos um caminho sem retorno. Nada na vida se repete, mas sempre se continua.
Vivemos sem compreender. Até questionamos o papel de Deus. Como Ele, por vezes, nos parece indiferente ao sofrimento da Sua obra criadora; incapaz de harmonizar a eterna insatisfação humana.
Porém, após uma grande perda talvez entendamos melhor quem é Deus para nós.
A morte de alguém que amámos muito bloqueia todas as respostas. Quanto maior o vínculo, maior a dor, maior a dificuldade em retomarmos o caminho, em reconstruirmos a nossa identidade fragilizada e insegura. Como é difícil reconhecermo-nos sem a outra metade de nós.
A perceção da finitude surge de uma forma clara e irreversível. Nada voltará a ser igual.
Teoricamente sabemos que a morte física não impede que essa pessoa viva em nós. Não apaga o que vivemos juntos. Ficou tudo o que guardámos na memória do coração. Mas como aceitar uma relação invisível?
Apenas um instante e toda a nossa vida se transforma. Tocamos no fundo do abismo. Voltar à tona exige muito esforço. É algo que temos de fazer por nós próprios. Podemos ter ajuda, mas o processo de aceitação e de mudança é trabalho nosso.
Temos direito à tristeza, às lágrimas e a uma imensa dor. É uma experiência dura. O tempo de luto é inevitável. Sem ele não nos reerguemos.
A conversa com uma psicóloga dos cuidados paliativos, poucos dias após a morte do meu marido, fez-me perceber que a melhor terapia é provocar lembranças boas, recordar momentos engraçados, reviver tudo o que nos tenha trazido felicidade. A revolta e a culpa, pelo que correu menos bem, amarram-nos, para sempre, a pesadelos sombrios dentro de nós.
Todos vamos perdendo pessoas que amamos. A morte obriga-nos a um olhar diferente sobre a vida. Uma coisa é existir outra é viver.
Consola-me muito pensar como a vida do meu marido foi plena de significado. Ficou paraplégico, na guerra colonial, aos vinte e três anos. Como a sua existência foi importante, o quanto serviu de exemplo e de incentivo, o quanto o seu sofrimento foi superação e coragem!
A saudade e a tristeza não me impedem de sentir gratidão por tanto amor na minha vida.
Celebrámos alegrias, sofremos juntos, vivemos com força e determinação, momentos inspiradores, incríveis e impensáveis.
O facto de viver muitos anos com as imensas limitações de um grande deficiente, ensinou-me a valorizar as capacidades que damos por adquiridas. Andamos, respiramos, usamos todas as nossas faculdades instintivamente, sem agradecermos o dom de usufruirmos de algo tão sagrado, que deveria ser motivo de enorme regozijo e gratidão.
Luto todos os dias para trazer ao meu coração as boas lembranças. É uma forma de honrar, agradecer e abençoar o privilégio de ter partilhado uma grande parte da minha vida com uma pessoa cuja existência foi valiosa, única e marcante. Deixou-nos uma história feita de paciência, dignidade e coragem.
Acredito que os verdadeiros companheiros nunca nos abandonam. A sua essência habitará sempre em nós.
Também acredito que o Amor não morre. O que de mais belo existe merece a imortalidade.
E é na casa onde sempre vivemos que continuamos juntos.