Violência e contemplação

 Violência e contemplação
J. B. Teixeira – Jornalista

Havíamos comprado um pacote turístico de sete noites em Sevilha. Nosso propósito, muito além de conhecer a capital da Andaluzia, de assistir uma tourada ou um espetáculo de flamenco, era presenciar a Semana Santa, celebrada de forma única nesta cidade. Milhares saem às ruas para acompanhar a condução de imagens pelas ruas estreitas, nos ombros de fiéis de diversas irmandades. Trata-se de tradição medieval, passando pela Via Crucis e culminando na redentora Páscoa.

Poucos meses antes de viajarmos entrou na pauta mundial a tal pandemia, excomungando viajantes, fechando negócios, quebrando governos, implantando a desconfiança entre as gentes, então divididas entre saudáveis e pestilentos. Talvez um dia, dissipados os exageros e findos os interesses, saibamos se houve uma regência em tudo isto ou apenas a humanidade debateu-se em medo, sob o obscurantismo que ergueu a bandeira da “ciência” e perseguiu os contrários, impôs a vacina como saída única e obrigatória e ameaçou os profissionais de saúde que pensavam de maneira diversa.

Chegamos a pensar em solicitar o resgate do que havíamos pagado, mas felizmente não levamos a ideia adiante. Aterrissamos em Madrid no dia da Independência do Brasil. Sem direito a malas despachadas na esteira, passamos pelo controle de passaportes e nos apressamos em buscar a conexão que nos traria ao destino final.

Antes de acessar o piso da conexão nos pediram os comprovantes de vacinação. Tudo certo com a esposa e a filha, mas minha segunda dose fora aplicada há mais de nove meses. Señor, hay que hacer un teste. Es gratis. Por favor, ven conmigo. Contraíra meses antes a gripe. Não tinha qualquer sintoma, mas naturalmente fiquei apreensivo.

Não éramos um time desportivo, no qual pesaria pouco a ausência de um integrante. Tínhamos hotel e carro reservados. Eu retornaria ao Brasil, mas minha esposa talvez não aceitasse sua permanência. Foram minutos em que temi um falso positivo, que nos colocaria numa enrascada. Tempo suficiente para que refletisse sobre a violência disto tudo, mascarada por ótimas intenções. Sob a bandeira desfraldada da “ciência”, empunhada sabe-se lá por quem.

A enfermeira, depois de tempo suficiente para que rezasse algumas Ave Marias, aproximou-se sorrindo, agitando os braços e me desejando buenos dias. Assim, eis-me no saguão do hotel, na noite sevilhana, cuja gente e os turistas lotam bares e restaurantes debaixo de uma lua cheia.

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Dois dias depois visitamos Gibraltar, este verdadeiro espinho na pata de Espanha. Um enclave na Andaluzia. Território ultramarino britânico, na extremidade espanhola, sua reconquista é um sonho dos espanhóis, com chances diminutas, para não dizer nulas. Com cerca de trinta mil ingleses, reassumi-la exigiria um êxodo dos atuais moradores, ou sua concordância com a autoridade espanhola. Do ponto de vista legal, por maiores e justas que sejam as reivindicações espanholas, o Tratado de Utrecht, de 1713, determinou a entrega da “… total propriedade da cidade e castelo de Gibraltar, junto com o porto, fortificações e fortes (…) para sempre, sem qualquer exceção ou impedimento”.

Tomamos o bondinho para o alto da Upper Rock e apreciamos a paisagem – além dos macacos sem rabo (Macaca sylvanus) que abordam os turistas,- que se não é feia também não é deslumbrante. O que tem relevo na visita é a consciência de que se está num ponto estratégico do trânsito marítimo no Mediterrâneo. Não é, portanto, em meio a tantas belezas estonteantes do mundo, um lugar para passar uma lua de mel, nem mesmo numa passagem de poucas horas.

A menos que se queira reforçar a posse, marcando território, como os gatos e o produto oloroso de sua bexiga, como fizeram Charles e Diana: o que incluíram no seu roteiro? Sim, ele mesmo. Exatamente o território ultramarino de Gibraltar.

Anos atrás visitamos a Escócia. Estive no parlamento daquela nação e pude haurir o patriotismo escocês nas palavras gravadas em gaélico naquele edifício, inaugurado pela rainha Elizabeth, que fica curiosamente na frente do castelo de Holyrood, onde viveu Maria Stuart, a prima de Elizabeth I, que a matou sem jamais tê-la visto. Dos Tudor aos Windsor muita água rolou, mas os ingleses têm uma história constante: não brincam em serviço. Onde morreu Elizabeth? Em Balmoral, na Escócia. Tenho dificuldade em acreditar que o local foi fruto do acaso.

Deixemos os Windsor para trás e voemos para a terra dos Bourbon. Como se sabe, a costa da África é visível de Gibraltar. Um pouco à direita, Tânger, a terceira maior cidade do Marrocos. Mais à esquerda, Ceuta … Opa! Uma cidade autônoma da Espanha, com mais de oitenta mil habitantes, um território reivindicado pelo Marrocos … Que também se debate por Melilla, já pros lados da Argélia, com população superior a sessenta mil pessoas.

Assim como a Inglaterra rejeita o pedido da Espanha, esta rejeita as aspirações marroquinas, o que a deixa numa condição claramente incoerente.

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Aproveitando a proximidade, fomos ao Algarve. Na cidade de Faro, perto do meio-dia, entramos numa igreja na área central, com exterior bem modesto. Seu interior, entretanto, era belíssimo, com um retábulo extraordinário, traduzindo a atávica espiritualidade do povo português, menos preocupado com a exterioridade.

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Fechando a conta: amigo paulista, descendente de espanhóis, perguntou se fomos a algum espetáculo de flamenco. Segundo ele, uma manifestação vocal que lembra o grito de um sujeito que acaba de pisar num prego … Não, não fomos, mas conheço um pouco do trabalho do craque da guitarra flamenca, Paco de Lucia. Filho de Algeciras, bem perto de Gibraltar, não se limitou ao estreito. Buscou o largo e conquistou fama internacional.

Pois este mesmo Paco aplaudiu de pé o nosso Yamandu Costa numa apresentação em São Paulo. Se o estreito quase liga a África e a Europa, mas as separa em desenvolvimento, os dons musicais conectam os homens e os gênios aí estão para nos lembrar que nossa essência é a mesma e que o talento é dádiva. E não tem fronteiras.

Quanto a Yamandu, ganhou o mundo, mas poucos sabem que este brasileiro é um dos maiores violonistas da atualidade. Fruto da estreiteza de uma nação ainda por consolidar-se.

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