Que caminho para a Paz?

 Que caminho para a Paz?
Maria Helena Guerra Pratas, Doutorada em Teologia pela Pontifícia Universidade da Santa Cruz

Em Josemaria Escrivá encontramos uma espiritualidade laical que implica um aprofundamento dos dons recebidos no Batismo, que lhe permite apelar à santificação dos fiéis correntes na vida profissional, familiar e social.

Na sua mensagem está implicado todo o Evangelho. Interessa-nos agora o que se refere aos Corações de Jesus e de Maria, aos quais teve grande devoção, como tantos mestres de vida espiritual que, ao longo dos séculos se uniram a essa tradição. Tudo o que escreve é fruto da sua vida espiritual, e ao mesmo tempo, profundamente teológico e humano.

NO CORAÇÃO DE CRISTO, A PAZ

O Coração de Cristo, Paz dos Cristãos é o único escrito do autor sobre este tema. Toda a vida de Cristo, desde a Encarnação, o seu andar redentor pela terra, até à entrega plena do Seu Coração trespassado, de carne, como o nosso, é o testemunho constante do mistério inenarrável do amor de Deus pelos homens[1]. Enfrenta o tema de uma possível crise com respeito a esta devoção, para esclarecer que a verdadeira devoção é todo um programa de conhecimento e amor, oração e vida. Em Cristo habita toda a plenitude da divindade corporalmente (Col 2, 9). E acrescenta: “a única superficialidade que pode haver nesta devoção é a do homem que não é integralmente humano e que, por isso, não consegue aperceber-se da realidade de Deus feito carne[2]. O Coração de Cristo, trespassado de Amor pelos homens, é uma resposta eloquente à pergunta sobre o valor das coisas e das pessoas[3].

 Ressalta a peculiar dignidade do mundo material e de todas as pessoas, de acordo com o seu espírito. Como Cristo fez o bem por todos os caminhos da Palestina, há que desenvolver em todos os caminhos humanos – família, sociedade, trabalho, cultura, descanso – uma grande sementeira de paz. Mas só se aprende a viver esse amor na escola do Coração de Jesus. Só contemplando o Coração de Cristo é possível amar, livres do ódio ou da indiferença[4]. Esta sementeira de paz e de alegria, de serenidade, não é alheia ao conselho de Jesus: “Aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29).

O autor considera o coração de Maria o melhor caminho para modelar segundo o coração de Cristo. Desde pequeno, renovava diariamente a Consagração a Nossa Senhora que tinha aprendido no lar familiar[5]. Estas devoções, unidas, cresceram nele e robusteceram-se ao longo dos anos. Repetia muitas vezes: “Doce Coração de Jesus, sede o meu Amor!, Doce Coração de Maria, sede a minha salvação!”[6]. Recebeu de seu pai a devoção à Virgem da Medalha Milagrosa, com os corações de Jesus e de Maria, que enlaça com as aparições da Virgem a Catalina Labouré em 1830[7]. Desde a juventude, Josemaria pressentia que Deus queria algo dele e dispôs-se a ser sacerdote. No seminário de S. Carlos, em Saragoça, havia uma representação do coração de Jesus inflamado de amor e coroado de espinhos, que o comovia profundamente[8]. Invocava os dois corações conjuntamente: Coração de Jesus, dá-nos a paz! Doce Coração de Maria, sede a minha salvação! [9].

O CORAÇÃO DO SENHOR É CORAÇÃO DE MISERICÓRDIA, QUE SE COMPADECE DOS HOMENS (Carta, 24-III-1930)

S. Josemaria viu o Opus Dei, tal como o Senhor o queria, no dia 2 de outubro de 1928, em Madrid. Começou a procurar abrir esse caminho que Deus lhe pedia traçar na terra. A essa luz recebida de Deus sobre a vocação universal à santidade e a procura da plenitude de vida cristã no meio do mundo, através do trabalho profissional, se referiria como algo que havia brotado do Coração misericordioso de Jesus: “O coração do Senhor é coração de misericórdia, que se compadece dos homens e se acerca a eles. A nossa entrega, ao serviço das almas, é manifestação dessa misericórdia do Senhor (…) para com toda a humanidade. Porque nos chamou a santificar-nos na vida corrente, diária; e a que ensinemos os outros (…) o caminho para se santificar cada um no seu estado, no meio do mundo”[10]. É significativo que veja o núcleo essencial desta mensagem divina, como manifestação da misericórdia do Coração do Senhor, com os olhos e o coração postos na multidão[11].

A Bula de sua Canonização chama-lhe o santo da vida ordinária[12]. Desde que viu a sua vocação, começou a mostrar com a sua vida e os seus ensinamentos, que era possível e necessário santificar-se na vida corrente, convertendo os trabalhos mais comuns em oração, em serviço aos outros. Assim como via a missão recebida como fruto do amor do Coração divino, assim invocava com clamor incessante o Coração maternal de Maria: “Aqueles Rosários completos, rezados pela rua (…). Nunca pensei que levar a Obra para a frente levaria consigo tanta pena, tanta dor física e moral: sobretudo, moral…. Iter para tutum. Mãe! minha Mãe! Não te tinha senão a Ti! (…) Mãe, ¡Cor Mariae Dulcissimum! Oh, quanto acudi a ti!” recordava[13].

Nessa época tinha por hábito pessoal acudir ao amor misericordioso de Jesus e a Nossa Senhora como Medianeira. Na Santa Missa, depois da Consagração, recitava em silêncio, internamente, a oração ao amor misericordioso que aprendera na juventude e que continuou ao longo da vida: “Pai Santo, pelo Coração Imaculado de Maria, vos ofereço a Jesus, vosso amado Filho e me ofereço a mim mesmo Nele – com Ele- por Ele a todas as suas intenções e em nome de todas as criaturas”[14].  Durante a guerra civil espanhol, tornou-se-lhe presente de modo novo a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, desejando meter dentro do Coração divino, cada um e todos os que haveriam de formar parte da sua família sobrenatural[15].

Abrir os caminhos divinos da terra, como costumava dizer, não foi tarefa fácil. O que hoje é doutrina conhecida, na altura era algo de tal modo inovador na Igreja, que rompia os moldes jurídicos do Direito Canónico vigente[16]. Chegaram a dizer-lhe que tinha chegado com cem anos de antecipação. Só em 1947 o Opus Dei recebeu o Decretum laudis e só no ano seguinte puderam vincular-se à Obra pessoas casadas. Em 1950 puderam incorporar-se sacerdotes diocesanos à Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz[17]. Por devoção ao Coração de Jesus, o Fundador pediu que a aprovação da Santa Sede tivesse a data dessa festa (16.VI.1950)[18]. Queria realizar a “sua Obra, a fim de que Cristo-Jesus efetivamente reine, porque todos com Pedro irão a Ele, pelo único caminho, Maria!”[19].  Chama poderosamente a atenção que não diga apenas que Maria é o caminho, mas o únicocaminho. O amor vivo a Cristo, a Maria, à Igreja e ao Romano Pontífice são características fundacionais do Opus Dei. Ressalta o desejo de servir a Igreja e o Vigário de Cristo, com fiel adesão ao Magistério[20].

O Papa Pio XII tinha consagrado a humanidade ao Coração de Jesus e mais tarde ao Coração Imaculado de Maria, e convidara as dioceses, paróquias e famílias católicas a realizar essa mesma consagração (Enc. Auspicia Quaedam, 1-V-1948). Nesse ambiente doutrinal e espiritual se situa a resolução de realizar a Consagração aos Corações de Jesus e de Maria[21].

Perante as incompreensões ao difundir a sua mensagem, as contradições e ameaças que pressentia, sentia a necessidade de se agarrar ao manto da Virgem[22]. E pedia que se repetisse a jaculatória Cor Mariae Dulcissimum, iter para tutum! Coração dulcíssimo da Maria, prepara um caminho seguro! E decidiu consagrar a Obra de Deus ao Coração Dulcíssimo de Maria, para deixar tudo nas suas mãos maternas: “farei a consagração do Opus Dei ao Imaculado Coração de Maria. (…). Vai ser uma consagração ambiciosa, porque consagraremos também os povos e nações que estão longe do seu Filho Divino” [23].

Realizou-a com palavras espontâneas no Santuário italiano de Loreto, no dia 15/8/1951, como relata numa das suas homilias[24]. Na sua epacta escreveu: “Consagração da Obra ao  Dulcíssimo e Imaculado Coração de Maria” e “Cor Mariae Dulcissimum, iter para tutum!”[25]Desde essa Consagração teve sempre nos lábios e no coração esta invocação, com a qual punha sob a proteção mariana o caminho (“iter”) canónico da Obra e a santidade dos seus membros. Posteriormente viria a acrescentar a estas intenções a oração pela Igreja – primeira de todas as suas intenções – em momentos tormentosos da sua história.

As grandes dificuldades económicas e angústias que supunham a edificação da sede central do Opus Dei em Roma levaram o Fundador a realizar una nova Consagração ao Coração de Jesus, a quem invocava, pedindo a paz: ¡Cor Iesu sacratissimum, dona nobis pacem! Fez a Consagração e encontrou a paz e o refúgio que pedia: “Concede-nos a graça de encontrar no divino Coração de Jesus nossa morada; e estabelece nos nossos corações o lugar do teu repouso [26].

Em homenagem de gratidão aos Corações de Jesus e de Maria, Josemaria Escrivá quis colocar nestes edifícios algumas lápides e jaculatórias que recordassem as Consagrações realizadas. A lápide com o texto da Consagração ao Coração de Maria, em versão latina, foi colocada à entrada da igreja prelatícia de Santa Maria da Paz como testemunho perene da sua intercessão maternal. Termina com a oração: “Coração de Maria, Mãe de Deus e Mãe nossa; Coração dulcíssimo, imagem perfeita do Coração de Jesus, atende as súplicas que com piedade filial te dirigimos: inflama os nossos pobres corações para que amemos com toda a alma a Deus Pai, a Deus Filho, a Deus Espírito Santo; infunde em nós um amor grande à Igreja e ao Papa (…). Significativamente, afirma que o Coração dulcíssimo de Maria é “imagem perfeita do Coração de Jesus”. Seria difícil dizer mais!

Uma outra lápide une as duas Consagrações: “Cuando estas casas se levantavam em serviço à Igreja com uma abnegação maior em cada jornada, permitia o Senhor que de fora viessem duras e ocultas contradições, enquanto o Opus Dei, consagrado ao Coração Dulcíssimo de Maria a XV de agosto de MDCCCCLI, e ao Coração Sacratíssimo de Jesus a XXVI de outubro de MDCCCCLII, firme, compacto e seguro se fortalecia e dilatava. Laus Deo[27]. Mas não se limitou às lápides comemorativas. Quis também que o primeiro Oratório que então se terminou fosse dedicado ao Coração de Maria; o retábulo é uma pintura da Virgem com o coração adornado com rosas brancas, figuração habitual na época. E o retábulo de um Oratório próximo do seu quarto é uma pintura do Coração de Jesus, em chamas de amor. Pensamos poder afirmar que se percebe aqui uma manifestação do “materialismo cristão” de que fala o autor, pela necessidade de sinais sensíveis que acerquem ao invisível. São testemunho de gratidão e oração, gravada em pedra. Traduzem a vida espiritual e materializam-na. A chave é a própria lei da Encarnação[28].

VAMOS, ATRAVÉS DO CORAÇÃO DULCÍSSIMO DE MARIA, AO CORAÇÃO SACRATÍSSIMO E MISERICORDIOSO DE JESUS

A Consagração ao Coração Dulcíssimo de Maria não foi o final, mas o início de outra etapa. Seguiu-se um novo período de intenso clamor de oração, que se prolongou por várias décadas: Coração dulcíssimo de Maria, prepara um caminho seguro! O Fundador repetia uma e outra vez e aconselhava a repetir esta jaculatória que foi ao longo dos anos uma continua oração corporativa da sua família espiritual. “Queres dizer a nossa Senhora aquela jaculatória que, em momentos de grande preocupação, tive de pôr na boca dos meus filhos, para a repetir, como se repetia, muchas vezes ao dia: “Cor Mariae Dulcissimum, iter para tutum”?[29]. Pôs assim em prática uma das suas convicções fundamentais: a importância primordial da oração. Rezou e pediu orações, expiação e horas de trabalho, em união com as suas intenções. Numerosos santuários marianos testemunharam a sua acesa e confiada petição: “Que a vossa oração chegue a Deus por meio do Coração dulcíssimo de Nossa Mãe Santa Maria[30].

Durante os anos 70 – época de grandes turbilhões na vida eclesial – sofreu profundamente pela Igreja universal, que atravessava uma grave crise de fé e de disciplina[31]. Por essa época, S. Josemaria recebeu luzes do Céu, que o confirmaram na confiança inquebrantável no auxílio divino. Precisamente na festa do Imaculado Coração de Maria (23-VIII-1971) – antes da reforma do calendário litúrgico – escutou na alma uma locução divina, umas palavras que, com ligeira variação, procedem da Epístola aos Hebreus 4, 16: “Adeamus cum fiducia ad thronum gloriae, ut misericordiam consequamur”[32]. Dias mais tarde, confidenciava: “Vamos, a través do Coração Dulcíssimo de Maria, ao Coração Sacratíssimo e Misericordioso de Jesus, pedir-lhe que, pela sua misericórdia, manifeste o seu poder na Igreja e nos encha de fortaleza para seguir adiante no nosso caminho, atraindo a Ele muitas almas. Adeamus cum fiducia ad thronum gloriae, ut misericordiam consequamur! Que o tenhais muito pertinente, também para esta ocasião que a humanidade atravessa. em conta nestes momentos e também depois. Eu diria que é um querer de Deus que metamos a nossa vida interior pessoal dentro dessas palavras que vos acabo de dizer: (…) ide —repito—  com confiança ao Coração Dulcíssimo de Maria, que é nossa Mãe e Mãe de Jesus. e  com Ela, que é Medianeira de todas as graças, ao Coração Sacratíssimo e Misericordioso de Jesus[33]. Parece-nos que ao ressaltar que é um querer de Deus, nestes momentos e também depois, S. Josemaria expressa que ir a Jesus por Maria não é uma devoção só para umas circunstâncias determinadas, mas algo permanente[34]. Esta observação parece muito também para esta ocasião que a humanidade atravessa.


[1] Cf. S. JOSEMARIA, Cristo que passa, (CQP) 162.

[2] S. JOSEMARIA, CQP, 163.

[3] Cf. S. JOSEMARIA, CQP, 165.

[4] Cf. S. JOSEMARIA, CQP,166.

[5] Cf. S. JOSEMARIA, Amigos de Deus, 296.

[6] ECHEVARRÍA, J., Memoria del Beato Josemaría Escrivá, Madrid: Rialp, 2000, 177.

[7] Cf. VÁZQUEZ DE PRADA, A, El Fundador del Opus Dei. Vida de Josemaria Escrivá de Balaguer, Madrid: Rialp, 1997 (I), 2002 (II), 2003 (III). Passaremos a citar AVP, I, 18.

[8] Cf. AVP, I, c.3,4.

[9] AVP, III, 227.

[10] S. JOSEMARIA, Carta 24-III-1930, 1, Arquivo Geral da Prelatura do Opus Dei (AGP), A.3, 91-1-3.

[11] Cf. AVP, I, 299.

[12] S. JOÃO PAULO II,«Bula de Canonização de S. Josemaria Escrivá», Romana, 35 (2002) 194-199.

[13] S. JOSEMARIA, AGP, P03 1978, 124.

[14] ECHEVARRÌA, J., Romana 61 (2015)310. 

[15] Cf. S. JOSEMARIA, Notas de uma meditação, 4-VI-1937, AGP, serie A-4.

[16] Cf. AVP, II, 327-328.

[17] Cf. REQUENA, F., «Presentación», SetD, 8 (2014) 9-20.

[18] Cf. AVP, III, 227.

[19] Cf. AVP, I, 306.

[20]  Cf. S. JOSEMARIA, Forja, 633.

[21] Cf. CANO, L., «Consagraciones del Opus Dei», DSJEB (2013), 261

[22] Cf. AVP, III, 195-202.

[23] AVP, II, 120. Parece fazer referencia a Consagração pedida por Nossa Senhora à irmã Lúcia.

[24] Cf. S. JOSEMARIA, CQP, 12.

[25] S. JOSEMARIA, AGP, P02, XI-1983, 1181.

[26] AVP, III, 228-233.

[27] AVP, III, 203-211.

[28] Cf. S. JOSEMARIA, CQP, 164.

[29] S. JOSEMARIA, AGP, P02 V-1960, 46-47. Cf. AGP, P02 VIII-1983, 94-95, 846-847.

[30] S. JOSEMARIA, Carta 19-III-1967, 150, AGP, P02, VIII 2001, 744.

[31] Cf. DEL PORTILLO, A., «Lettera pastorale sull’avvenuta trasformazione dell’Opus Dei in prelatura personale di ambito internazionale», en Ateneo Romano Della Santa Croce (ed.), Rendere amabile a veritài, Città do Vaticano: LEV, 1995, 48-90 (55).

[32] Cf. ECHEVARRÌA, J., Carta del Prelado, 310-311.

[33] S. JOSEMARIA, AGP, P02 VIII 2001, 744.

[34] Cf. BURKHART, E – LÓPEZ, J., Vida cotidiana e santidad en a enseñanza de San Josemaría. Estudio de teología espiritual, Madrid: Rialp, 2010, I, 573ss. Agradeço muito a este último autor os valiosos conselhos recebidos e o cuidado com que reviu os escritos que lhe enviei.

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