Os galos do rinhadeiro humano
De pronto devo confessar que continuo impressionado pelas imagens de alguns documentários que assisti sobre a segunda guerra mundial.
Nunca me interessei muito pelo assunto, que aliás sempre tive na conta de aborrecido. Talvez pela permanente visão caricata dos alemães, mais malvados que todos os demais, comandados por um pária de fato psiquicamente perturbado.
Correndo o risco do arcaísmo da piada, me vem à cabeça o motejo do galo bom. Um sujeito chega na rinha e pergunta qual é o galo bom. É o branco, responde um apostador inveterado, tipo de poucas palavras.
O sujeito aposta tudo o que tem no galo branco. Que leva uma sova exemplar. Desconsolado, o recém-chegado pergunta ao mau conselheiro por que o prejudicara.
– Moço, o branco é o bom. O marvado é o outro …
Ao fim, em 1945, o galo Hitler foi à lona. Arrastara seu povo à ruína e o condenara ao repúdio internacional continuado. Berlim era um arremedo de cidade, devastada quarteirão a quarteirão.
Os russos chegaram primeiro. Cravaram a bandeira com a foice e o martelo no Reichstag enquanto a Rádio Berlim tocava Crepúsculo dos Deuses, de Wagner. O mundo estava livre dos sonhos doentios do austríaco, filho de Braunau, onde estive por algumas horas. Cruzei a ponte para pedestres, sobre o rio Inn, que separa Áustria e Alemanha. Olhei uma e outra, da respectiva vizinha. O que separa os homens? Um rio? A língua? É muito difícil compreender os homens.
Certa feita, num dia tórrido, nas proximidades do lugar em que João Batista batizou Cristo, às margens do Jordão, olhei para Israel e perguntei ao militar jordaniano se os israelenses atirariam em mim se tentasse cruzar o rio.
Sua resposta foi surpreendente: “Não. Se você tentar, eu atiro em você”. Me imagino alvejado pelas costas. Por tão pouco. Cai o pano. Volto minha atenção ao documentário alemão Weltkrieg–Stalingrad. Amostra nua, cruel, do que passaram alemães e russos na batalha das batalhas. Stalingrado suplanta em brutalidade as mais decisivas batalhas que a insana humanidade um dia gerou, como Gaugamela, Lepanto, Austerlitz ou Waterloo.
Stalingrado foi uma das mais duras provas para a tenacidade humana, em que até couro e lama serviram como alimento. A batalha terminou com a rendição do general Paulus ao galo Zukhov.
Paulus é, até hoje, considerado por muitos como um traidor. Porque no senso militar comum, generais com insígnias verdadeiramente heroicas deveriam preferir a morte á rendição, como um capitão que naufraga com seu navio. Paulus entregou-se, enquanto Rommel, a raposa do deserto, suicidou-se nele, um deserto não só de areias, mas sobretudo de perspectivas.
Os alemães invadiram a Rússia em 22 de junho de 1941. Em 24 de janeiro de 1943, Paulus envia a Hitler uma mensagem prá lá de desesperada:
“Tropas sem munição ou alimento. Contato mantido com elementos de apenas seis divisões. Indícios de fragmentação nas frentes norte, sul e oeste. Pouca alteração na frente leste. Dezoito mil feridos sem atendimento, ataduras ou medicamentos. (…). Não mais possível exercício de comando. Frente rompida em consequência de penetrações profundas por três lados. (…) Inútil continuar defesa. Colapso inevitável. Exército solicita autorização imediata para rendição afim de salvar vidas das tropas restantes.”
Em Nürenberg o infeliz Paulus revelou a resposta que recebera: “Capitulação impossível. O 6º Exército cumprirá com seu dever histórico em Stalingrado até o último homem a fim de possibilitar a reconstrução da frente oriental”.
Só mesmo quem estava na aspa do touro poderia entender a inutilidade da decisão. A loucura é surda. As imagens de Stalingrado evocam o que nos resta de humano, clamam por nossa compaixão e nos impõem a reflexão sobre o que leva ao crime de exércitos, à barbárie com hinos e bandeiras, o que nos empurra para a aniquilação, o que nos conduz ao brete do sectarismo.
Tive a oportunidade de conhecer, ainda menino, alemães que foram mantidos presos após o término da segunda guerra. Recentemente conversei com alemães cujos parentes foram mantidos sob custódia dos russos, aprisionados logo depois da batalha de Stalingrado, na qual morreram cerca de dois milhões de pessoas.
Ouvi relatos de prisioneiros dados como mortos por suas famílias e ainda agora me emociono com a descrição das cenas de reencontro. Está muito além de um filme. É nossa própria essência estraçalhada.
No rinhadeiro humano sempre haverá os galos ainda mais marvados. O que nos cumpre é recusar o alinhamento em suas hostes.