Os abusos e a Igreja católica

 Os abusos e a Igreja católica

Prefácio do secretário de Estado da Santa Sé, card. Pietro Parolin, ao livro “Il dolore della Chiesa di fronte agli abusi” (A dor da Igreja perante os abusos), assinado pelo bispo emérito de Nanterre, D. Gérard Daucourt, pelo padre canossiano, psicólogo e psicoterapeuta Amedeo Cencini, e pelo teólogo Andrés Torres Queiruga (Pazzini Editore).

Na linguagem bíblica, a palavra coração refere-se à pessoa na sua totalidade, e não apenas à sede dos sentimentos e dos afetos. O coração é o lugar de onde dimanam pensamentos, propósitos, paixões e projetos, espaço de terra sagrada da responsabilidade, da liberdade, a sede das opções a realizar; com o coração não só se ama, mas pensa-se, escuta-se e relaciona-se.

Sem meios termos, Jesus explica que o mal e o bem têm origem precisamente no coração: «Porque é do interior do coração dos homens que saem os maus pensamentos, as prostituições, roubos, assassínios, adultérios, ambições, perversidade, má fé, devassidão, inveja, maledicência, orgulho, desvarios» (Marcos 7, 21-22); como também proclama bem-aventurado quem tem um coração puro, isto é, capaz de reservar a Deus o primeiro lugar (cf. Mateus 5, 8), ao mesmo tempo que critica quem, ao contrário, o endureceu, fechando-se ao seu amor.

Bem sabemos o quanto é indefeso o coração de uma criança, facilmente influenciável por aquilo que sente, vê ou recebe. Quando, com efeito, Jesus pronuncia o discurso sobre o escândalo, tem entre os seus braços uma criança. Mas o episódio referido por Mateus tem uma premissa: a pergunta sobre o poder dos discípulos: «Quem é o maior no Reino dos Céus?».

Então Jesus assume como modelo uma criança: «Se não voltardes a ser como as criancinhas, não podereis entrar no Reino do Céu. Quem, pois, se fizer humilde como este menino será o maior no Reino do Céu. Quem receber um menino como este, em meu nome, é a mim que recebe»

A criança como modelo de autenticidade, simplicidade, transparência da própria fé.

Daqui deriva a condenação: «Mas, se alguém escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, seria preferível que lhe suspendessem do pescoço a mó de um moinho e o lançassem nas profundezas do mar. Ai do mundo, por causa dos escândalos! São inevitáveis, decerto, os escândalos; mas ai do homem por quem vem o escândalo!». E conclui: « Livrai-vos de desprezar um só destes pequeninos, pois digo-vos que os seus anjos, no Céu, vêem constantemente a face de meu Pai que está no Céu» (Mateus 18, 6-10).

Diante da dor infligida por comportamentos que surgem como loucos, dramáticos, além de qualquer possível explicação e, até, qualquer capacidade de compaixão, o ser humano precisa de encontrar “uma” causa. Quanto mais ela é clara e circunscrita, mais parece aliviar a raiva e o desconcerto que esse acontecimento produziu.

Todavia, as vicissitudes humanas subtraem-se à explicação unívoca e linear: o ser humano é muito complexo, entre bem e mal, entre recursos e limites, como são inevitavelmente complexas as motivações que movem o seu coração e por vezes os seus gestos.

O abuso sobre menores está entre aquelas situações insustentáveis de aceitar, ainda mais quando quem comete o crime é uma pessoa que fez do serviço de Deus e do seu povo uma missão de vida. É demasiado!

Urge pôr-lhes remédio. Sobre esta questão intervêm os temas que nestes anos a Igreja colocou com nervo: do fim da lei do silêncio à transparência, à formação, à direção espiritual, ao acolhimento e à escuta das vítimas.

Além disso, permanece em aberto a interrogação última de como dar um sentido ao sofrimento dos inocentes. Pergunta que não tem resposta fora da fé. Só se Deus está nas vítimas podemos entrever um sentido, de outra forma estamos na angústia. Especificamente, nestes anos começou a colocar-se a questão de qual é a causa: «É culpa do celibato!»; «se a Igreja estivesse mais atenta a não acolher homossexuais!»; «se houvesse menos clericalismo!». E, por fim, pergunta-se o que deve ser feito à pessoa do culpado.

Muitas vezes as duras palavras de Jesus sobre quem escandaliza “os pequeninos” são utilizadas para condenar os pedófilos e até para lhes justificar a condenação à morte. Como pode Jesus chegar a tanto? Logo Ele que indica a via da perfeição no amor pelos inimigos e na oferta do perdão setenta vezes sete, isto é, sempre!

A imagem de suspender ao pescoço a mó de um moinho é um sinal da duríssima condenação de quem escandaliza, um sinal muitas vezes reutilizado para outros juízos sobre culpas gravíssimas, mas não é o fundamento bíblico nem do suicídio do pecador nem da pena capital a reservar aos profanadores da inocência dos pequeninos.

Jesus parece recorrer a uma imagem terrível para fazer compreender a gravidade da culpa de quem escandaliza o irmão de fé frágil, e utiliza uma linguagem simbólica e vigorosa para recordar o severo juízo divino em relação àquele pecado. (…)

Uma atitude fundamental é a de não ficar satisfeito do que se ouve dizer ou de leituras simplistas, ficando, antes, aberto às investigações e aos estudos sobre o tema do abuso, que diz tanto respeito ao âmbito familiar quanto desportivo e das organizações religiosas. Celibato/abuso, homossexualidade/abuso, atenção aos reducionismos perigosos e totalmente arbitrários!

A prática da Igreja latina, que pede aos seus ministros o compromisso do celibato e, consequentemente, a continência sexual, remonta a dois concílios significativos: o Concílio de Elvira, no século IV, e o Concílio Lateranense IV, em 1215, e desde então essa norma permaneceu uma constante para os sacerdotes da Igreja católica latina. O problema dos abusos sobre menores, por seu lado, teve um andamento descontínuo, em termos numéricos de crescimento e decrescimento ao longo dos anos. É evidente, portanto, que a ligação causa-efeito entre um e outro é indevido, e faz pouco sentido colocar em discussão o celibato em si, na base das suas derivas.

Sejam mais tomados em consideração – pela incidência de relevo sobre o fenómeno dos abusos – os programas formativos de seminários e institutos religiosos, que só nas últimas décadas deram uma séria atenção à maturidade humana e psicoafectiva dos candidatos e à qualidade das relações fraternas, antes decididamente na sombra em relação à formação académica e espiritual. Torna-se mais claro, então, como a chaga do abuso, dentro e fora da Igreja, está sobretudo ligada a personalidades desarmónicas, gravemente deficitárias no plano emotivo e de capacidade relacional.

Não só. Apesar dessas aquisições, numa certa gama de testes de diagnóstico psicológico os padres abusadores, no que diz respeito a características individuais externas ou mais superficiais, não diferem de modo significativo dos não abusadores, nem manifestam mais patologias em comparação com o grupo de controlo, dado que soa desconcertante quanto à nossa necessidade de encontrar evidências claras e unívocas. Por outras palavras: não são imediatamente reconhecíveis, confirmando que as generalizações grosseiras são totalmente inadequadas para “explicar” o drama do abuso sobre menores.

É preciso, portanto, uma análise mais aprofundada e destes de tipo projetivo para intercetar eventuais problemas psicológicos que representem os fatores que predispõem ao abuso, ou (…) a prisão, em que o amadurecimento afetivo do indivíduo, leigo ou presbítero, permaneceu bloqueado.

A maturidade humana: é precisamente este o aspeto central, ainda que não exclusivo, a tomar hoje em séria consideração na avaliação de quem está em caminho vocacional, nos seminários e nas comunidades religiosas, e não só na fase inicial do percurso, mas ao longo de toda a vida ministerial e apostólica. O olhar sobre a pessoa deve ser global, capaz de avaliar o seu funcionamento atual, e como foram vividas e integradas (ou não) eventuais situações dramáticas que marcaram a infância e a adolescência: violência físicas e verbais, abandonos, ambientes conflituais.

Toda a parcelação da pessoa a um só dado da sua história ou da sua personalidade representa uma pesada e injusta condenação a priori sobre a sua maturidade e sobre a capacidade de amar de maneira autêntica, fiel e livre, segundo a sua vocação específica.

Nesta lógica de respeito pela complexidade do ser humano, em que toda a dimensão de si deve ser lida no conjunto de um todo mais amplo, também a orientação homossexual não pode ser considerada nem causa, nem aspeto típico do abusador, ainda mais quando é desligado da estrutura geral da pessoa. É uma associação grave e cientificamente insustentável aquela que liga o “sexual ofender” à sua homossexualidade, a priori, e sem uma avaliação subjetiva.

A Igreja, hoje, finalmente, pretende promover este ambiente de atenção à pessoa e à formação humana como prevenção dos abusos da parte de ministros ordenados, porque «agora não podemos mais dizer que não sabíamos» (…).

É unanimemente aceite, com efeito, que no nosso tempo, tão complexo e articulado como nunca, não se podem improvisar os papéis de superior ou formador. É verdade que a sua preparação não constitui garantia absoluta de um andamento sereno do futuro presbítero, mas é ineludível a exigência de que os educadores tenham os instrumentos necessários para assumir um papel tão delicado e de grande responsabilidade, pessoal e eclesial.

Mas nem só isto basta. É também necessário repensar com coragem e clareza o acompanhamento pós-formação: a solidão e um excesso de trabalho minam demasiadas vezes a serenidade e o equilíbrio psicológico e emotivo dos presbíteros, tornando urgente uma reflexão sobre o pós-seminário, sobre mudanças antropológicas e sobre o ambiente em que o ministro se insere. (…)

Uma reflexão articulada e competente [por parte dos autores do livro prefaciado], que não se poupa a evidenciar as contradições em que a Igreja caiu no passado e pode ainda cair, a par com a sua vontade honesta de abrir os olhos. A mudança de rota, porém, deve concretizar-se num compromisso efetivo e construtivo para compreender até ao fundo o fenómeno do abuso e eliminar as condições que o favorecem. (…)

Da atenção do bispo ao abusador e de uma leitura sistémica que reconhece a complexidade do fenómeno nasce a proposta de «quase um decálogo» – como o define o formador e psicólogo [P. Amedeo Cencini] – de atitudes ideais que deveriam ser concretizados tanto pela Igreja como pelas comunidades singulares para prevenir e/ou enfrentar o mal. Parte-se do reconhecimento e denúncia do abuso, passando pela identificação das raízes e das consequências do drama, chegando à atenção à vítima e à vigilância sobre o abusador, através da formação inicial e permanente de seminaristas e presbíteros. (…)

Todos precisamos desta perspetiva humana e misericordiosa, porque demasiadas vezes fica-se pelo reconhecimento da culpa e a punição do culpado, mas perde-se de vista o estilo compassivo de Jesus, como nos recordam as palavras da “Amoris laetitia” (…): «Ninguém pode ser condenado para sempre porque não é a lógica do Evangelho» (n. 297). Quem errou, quem saiu do caminho, quem cometeu o mal não pode ser abandonado a si próprio; é a possibilidade de que uma história ferida possa encontrar acolhimento para além da desesperação, e quem errou possa «avançar por um caminho de paz e de cura» que dê esperança.

De Jesus, que tem nos braços uma criança e pronuncia severas palavras em sua defesa, podemos e devemos aprender a ternura e a responsabilidade em relação aos pequeninos, a ter, como Ele, apertada entre os braços a fraqueza de todos, essa fragilidade que requer custódia amorosa e cura atenta, mas também uma contínua e profunda conversão, para que, como recorda o papa Francisco, a santidade pessoal e o compromisso moral ajudem a promover a credibilidade do anúncio evangélico e a renovar a missão educativa da Igreja (cf. Carta Apostólica em forma de “Motu Proprio” do sumo pontífice Francisco sobre a proteção dos menores e das pessoas vulneráveis, 26 de março de 2019).

*Card. Pietro Parolin, In Settimana News, Trad.: Rui Jorge Martins, Imagem: Tinnakorn/Bigstock.com, Publicado em 30.03.2023 in Pastoral da Cultura

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