‘O que partido nasceu nem tu consertas nem eu’
A vida gasta muito do seu tempo a gatear os cacos de sonhos desfeitos: sonhos pessoais, familiares, empresariais, sociais….
Há quem tente consertar esses sonhos com paciência, jeito, humildade e verdade e até consegue fazê-lo.
É um êxito a festejar com os cireneus desse nobre feito.
Há quem o tente fazer mas de forma pífia, sem paciência, sem jeito, sem humildade e sem verdade, acabando por provocar ainda mais cacaria.
Acredita-se que, se lhe derem todos os pedaços, e assim o quiserem, Deus pode ajudar a consertar corações escaqueirados.
Muitos não acreditam, mas que é uma verdade mais que comprovada lá isso é!
Em tempos, andavam pelas portas aqueles que consertavam louça de porcelana com grampos, isto é, gateavam uns e tapavam, com pingos não sei de quê, os buraquitos que o uso provocava em pratos de alumínio ou de esmalte, arranjavam guarda-chuvas, amolavam facas, endireitavam os dentes a garfos, recuperavam o mais que fosse dessa tralha amuada lá por qualquer canto à espera de quem lhe prestasse atenção.
Era um know-how de clínica geral, aberto a curar as maleitas da austeridade que não permitiam desperdiçar ou deitar fora fosse o que fosse que desse para recuperar.
Oh, como isto já foi civilizado!
Hoje há muita gente que só vê cacos neste mundo olhado sem futuro.
Outra muita gente, porém, olha para o futuro deste mundo vendo esses cacos como matéria-prima indispensável para grandes ditos e feitos, para êxitos e obras colossais.
Sim, este mundo não tem conserto, dizem os pessimistas à espera do diabo.
Este mundo vai de vento em popa, dizem os otimistas irritantes.
Este mundo, apesar de ser um vale de lágrimas, lá vai caminhando como pode e o deixam, dizem outros e mais outros.
Nós estamos como o tolo no meio da ponte, dizem os que sempre tombam para o lado das maiorias, como se a verdade dependesse de maiorias, manipuladas ou não.
Ainda outros, nem pessimistas nem otimistas, são mais realistas e agradecidos, sentem-se cuidadores deste mundo.
Entendem que quem lho ofereceu com tanta beleza, sabedoria e amor, também lho entregou como presente ‘inacabado’, para que sentissem a alegria e o gosto de o cuidar e aperfeiçoar, com humildade e sentido de missão.
Assim sendo, consomem a vida a gatear o mundo, devido às birras, ambições e direções erradas, dos que, julgando o mundo como seu e só seu, têm o bel-prazer de o desfazer em cacos, prejudicando a convivência humana, semeando guerra, sofrimento, pobreza, indiferença, solidão, insegurança, medo e desânimo, como se os direitos humanos não fossem para todos.
Esticando bem os olhos por esse mundo além – sem telescópio espacial nem espectrógrafo para, juntamente com a ciência, deslindar o pó das estrelas de que somos feitos -, timoneiros há por esse mundo fora que, talvez por terem a sua estrelinha protetora em dias não, não querem beneficiar o mundo em proveito de todos.
Isto de meter as mãos à obra e se desembaraçar nesse nobre ofício, tem muito que se lhe diga.
Se sobretudo depende da ‘cabecinha pensadora’, também depende da força e da saúde das mãos em causa.
Pode haver mãos doentes, trémulas, com artroses e artrites reumatoides, incapazes de segurar o mundo em liberdade e justiça, com responsabilidade, habilidade e destreza.
Pode haver mãos ambiciosas quanto baste, que agem com garras de carnívoro, pilhando, matando, destruindo, emperuando-se para que sejam tidas como fortes e temidas, esquecendo as lições, as ironias e os caprichos da história.
Outras poderá haver que usam o mundo da mesma forma que utilizam os pratos: só para comer. Embora a traça as possa corroer, fundamental é terem as suas arcas cheias. E que dizer das mãos que fomentam a cultura dos muros como consequência das altas muralhas que construíram no seu coração? Infelizmente, a emenda não será fácil e até pode ser pior que o soneto.
Estas ideias e sentimentos velhos, com mofo, fazem lembrar o ditado popular: ‘burro velho não toma andadura e se a toma pouco lhe dura’.
Esta dureza da mente e do coração, destrói todo aquele que pensa e é diferente, quer reinar sem oposição, age como se só ela existisse, como se só ela tivesse a verdade e a razão, como se só ela tivesse o direito de ver e pensar.
Na Fratelli Tutti, afirma o Papa Francisco:
“Durante décadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando para variadas formas de integração”.
(FT10)
É o vais! A história “dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados, exacerbados, ressentidos e agressivos”.
Há a tentação de querer rasgar e queimar a história, começando tudo de novo.
Há uma “espécie de ‘desconstrucionismo’, em que a liberdade humana pretende construir tudo a partir do zero”.
Rejeita “fazer suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda mais altas” (FT11).
Consumir e gozar sem limites, descartar e ridicularizar quem pensa o contrário e não lhes cai no goto, promover individualismos sem conteúdo, formatar as pessoas para que “desprezem a história, rejeitem a riqueza espiritual e humana que se foi transmitindo através de gerações, ignorando tudo quanto os precedeu” (FT13), é a mentalização que ideologias fazem para levar a água ao seu moinho, um moinho sem conteúdo, sem grão para farinha que faça pão saboroso, que alimente e robusteça.
Os povos que se deixam ir na onda, que alienam a sua tradição e toleram que se lhes roube a alma, diz Francisco, “perdem, juntamente com a própria fisionomia espiritual, a sua consistência moral e, por fim, a independência ideológica, económica e política”.
Uma forma eficaz de o fazer “é esvaziar de sentido ou manipular as ‘grandes’ palavras. Que significado têm hoje palavras como democracia, liberdade, justiça, unidade? Foram manipuladas e desfiguradas para as utilizar como instrumento de domínio, como títulos vazios de conteúdo que podem servir para justificar qualquer ação (FT14).
Com a devida vénia, transcrevo este poema de Fernando Pessoa, o que me ofereceu o título para este texto.
‘DEITA GATOS’
“Ó rapaz que deitas gatos Deitas gatos só em pratos Só em tachos e tigelas, Ou deitas gatos também Nas almas e no que há nelas Que as quebra em mal e em bem? Ah, se, por qualquer magia, As tuas artes subissem Àquela melhor mestria De pôr gatos que se vissem Nesta alma que se quebrou No que sonho e no que sou! Então... Qual então! Que tratos Dei a um poema que surgiu! Só consertas, só pões gatos No inteiro que se partiu. O que partido nasceu Nem tu consertas nem eu.” (Fernando Pessoa)