O mistério dos talentos

 O mistério dos talentos

A parábola dos talentos (Mateus 25, 14-30) é hoje, a meu ver, perigosa: perigosa porque muitas vezes a ouvi comentar de uma maneira que, em vez de impelir os cristãos à conversão, parece confirmá-los no seu atual comportamento entre os outros homens e mulheres, no mundo e na Igreja.

Por isso talvez fosse melhor não ler este texto, em vez de o ler mal…

Na verdade esta parábola não é uma exaltação, um aplauso à eficiência, não é uma apologia de quem sabe ganhar lucros, não é um hino à meritocracia, mas é uma verdadeira e autêntica contestação em relação ao cristão que muitas vezes é morno, sem iniciativa, satisfeito por aquilo que faz, receoso operante a mudança exigida pelos novos desafios ou pelas alteradas condições culturais da sociedade.

A parábola não confirma nem o “ativismo pastoral” em que caem muitas comunidades cristãs, muitos “agentes pastorais” que não sabem ler a esterilidade de todo o seu esforço, mas pede à comunidade cristã consciência, responsabilidade, laboriosidade, audácia e sobretudo criatividade.

Não é a quantidade do fazer, das obras, nem o ganhar prosélitos que tornam cristã uma comunidade, mas a sua obediência à Palavra do Senhor que a impulsiona para novas fronteiras, para novas praias, estradas não percorridas, ao longo das quais a bússola que orienta o caminho é apenas o Evangelho, unido ao grito dos homens e das mulheres de hoje quando balbuciam: «Queremos ver Jesus!» (João 12, 21).

Leiamos então com inteligência esta parábola, cuja perspetiva, repito-o, não é económica nem financeira; não é um convite ao ativismo, mas à vigilância que permanece na expetativa, não satisfeita com o presente, mas totalmente direcionada para a vinda do Senhor.

Ele já não está entre nós, na Terra, é como se tivesse partido em viagem e confiou aos seus servos, aos seus discípulos, uma tarefa: multiplicar os dons por Ele dados a cada um.

De acordo com outros padres orientais, os talentos são as palavras do Senhor confiadas aos discípulos para que as guardem, decerto, mas sobretudo para que as tornem frutuosas na sua vida, as ponham em prática até as semear copiosamente na terra que é o mundo

Na parábola, a dois servos o Senhor deixou muito, uma quantia substancial – cinco lingotes de prata a um, dois a outro –, para que a façam frutificar; a um terceiro servo deixou um só lingote, que ainda assim não é pouco.

Em todos eles depositou a sua confiança sem limites, confiando-lhes os seus bens.

Cabe por isso aos servos não trair a grande confiança do proprietário e realizar uma sábia gestão dos bens, que não são seus, mas do dono, que, ao regressar, lhes dará a recompensa.

A cada um o proprietário dá em função da sua capacidade, e o seu dom é também uma tarefa: cuidar e fazer frutificar.

Para além da imagem dos talentos, o que é este dom, em definitivo?

Segundo Ireneu de Lyon é a vida concedida por Deus a cada pessoa. A vida é um dom que não deve absolutamente ser desperdiçado, ignorado ou dissipado.

Infelizmente, temos de o constatar, para alguns a vida não tem valor algum: não a vivem, antes desperdiçam-na e estragam-na ao ponto de fazer dela um estranho enjoo (cf. Konstantinos Kavafis), e assim se deixam viver.

Porém só se vive uma vez, e fazê-lo com consciência e responsabilidade é decisivo para salvar uma vida ou perdê-la.

De acordo com outros padres orientais, os talentos são as palavras do Senhor confiadas aos discípulos para que as guardem, decerto, mas sobretudo para que as tornem frutuosas na sua vida, as ponham em prática até as semear copiosamente na terra que é o mundo.

De novo é questão de vida, de «escolher a vida» (cf. Deuteronómio 30, 19).

O servo confessa que fabricou uma imagem distorcida do senhor, uma imagem plasmada pelo seu medo e pela sua incapacidade de ter confiança no outro: ele considera o proprietário como alguém que lhe mete medo, que pede uma escrupulosa observância daquilo que ordena, que age de maneira arbitrária. Tendo esta imagem em si, optou por não correr riscos

«Após muito tempo» – alusão à demora da parusia, da vinda gloriosa do Senhor (cf. Mateus 24, 48; 25, 5) – «o proprietário regressa e pede contas da confiança por ele colocada nos seus servos, os quais devem mostrara a sua capacidade de ser responsáveis, isto é, capazes de responder à confiança recebida.

Eis, portanto, que todos se apresentam diante dele.

Aquele que tinha recebido cinco talentos mostrou-se trabalhador, empreendedor, capaz de arriscar, empenhou-se a fim de que os dons recebidos não fossem diminuídos, desperdiçados ou inutilizados; por isso, quando entrega ao proprietário dez talentos, recebe dele o elogio: «Bem, servo bom e fiel (…) entra na alegria do teu Senhor».

Acontece o mesmo para o segundo servo, também ele capaz de duplicar os talentos recebidos.

Para estes dois servos a recompensa é proporcionalmente igual, ainda que as somas confiadas tenham sido diferentes, porque ambos agiram segundo as suas capacidades.

Vem por fim aquele que tinha recebido um só talento, e ao estender as mãos manifesta o pensamento que o paralisou: «Desde quando me deste o talento, eu sabia que és um homem duro, exigente, que faz aquilo que quer, e recolhes também onde não semeias».

Com estas palavras («pelas tuas palavras te julgo», lê-se no texto paralelo de Lucas 19, 22), o servo confessa que fabricou uma imagem distorcida do senhor, uma imagem plasmada pelo seu medo e pela sua incapacidade de ter confiança no outro: ele considera o proprietário como alguém que lhe mete medo, que pede uma escrupulosa observância daquilo que ordena, que age de maneira arbitrária.

Tendo esta imagem em si, optou por não correr riscos: colocou em segurança, debaixo da terra, o dinheiro recebido, e agora restitui-o tal e qual.

Assim devolve ao dono aquilo que é seu e não rouba, não peca…

“Senhor, eu ganhei um só talento, duplicando o que me deste, mas durante a viagem perdi todo o dinheiro. Sei, todavia, que tu és bom e compreendes a minha desgraça. Não te trago nada, mas sei que és misericordioso”

Mas eis que o senhor se encoleriza e lhe responde:

“És um servo malvado e preguiçoso. Malvado porque obedeceste à imagem perversa que fizeste do senhor, e assim viveste uma relação de amor servil, de amor ‘restringido’.

Por causa disso foste preguiçoso, não foste de confiança, não tiveste nem o coração nem a capacidade de trabalhar segundo a confiança que te concedi.

Nem sequer fizeste o esforço de meter o talento no banco, onde teria dado fruto, dando-me juros. Não cuidaste do meu bem a ti confiado”.

Sim, sabemo-lo: é mais fácil enterrar os dons que Deus nos deu, em vez de os partilhar; é mais fácil conservar as posições, os tesouros do passado, do que ir descobrir novos; é mais fácil desconfiar do outro que nos fez o bem em vez de responder conscientemente, na liberdade e por amor.

Eis assim o louvor por quem arrisca e a culpabilidade de quem se contenta com aquilo que tem, enclausurando-se no seu “eu mínimo”.

Este servo não fez o mal; ainda pior, não fez nada!

Por isso, diante de Deus, no dia do juízo, comparecerão dois géneros de pessoa: quem recebeu e fez frutificar o dom; quem o recebeu e não fez nada.

Os servos fiéis entrarão na alegria do Senhor; quem, pelo contrário, foi “bom por nada” será espoliado inclusive dos méritos de que pensava poder orgulhar-se.

Quanto a mim, gostaria que a parábola se concluísse de outra forma: assim seria mais claro o coração do proprietário, enquanto o coração do discípulo seria aquilo que o proprietário deseja.

Ouso por isso propor esta conclusão “apócrifa”:

Vem o terceiro servo, a quem o proprietário tinha confiado um só talento, e diz-lhe: “Senhor, eu ganhei um só talento, duplicando o que me deste, mas durante a viagem perdi todo o dinheiro. Sei, todavia, que tu és bom e compreendes a minha desgraça. Não te trago nada, mas sei que és misericordioso”.

E o proprietário, para quem mais do que o dinheiro importava que aquele servo tivesse uma imagem verdadeira de si, disse-lhe: “Bem, servo bom e fiel, ainda que nada tenhas, entra também na alegria do teu senhor, porque confiaste em mim”.

Mesmo desta maneira, a parábola seria boa notícia!

Enzo Bianchi, In Altrimenti, Trad.: Rui Jorge Martins, Imagem, Publicado em 15.11.2023 | Atualizado em 17.11.2023

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