O espírito do capitalismo
É sempre engraçado ler um texto escrito há quase cem anos, ou há séculos, e identificá-lo como algo que poderia ter sido escrito instantes atrás.
Confesso que tive esta tremenda e agradável surpresa algumas vezes, como ao ler um autor da Patrística, ou Xenofonte ou Demóstenes, aquele orador que se notabilizou por virar situações bem adversas só com suas hábeis palavras.
Voltei a experimentar esta sensação ao ler recentemente o clássico “A ética protestante e o espírito do capitalismo” de Max Weber, que o escreveu no início do século XX e o complementou no ano de sua morte, em 1920.
Por certo hoje ele mudaria muitas coisas, como se dá com todos os que um dia releem o que escreveram. Ainda que mantido o mote, sempre há algo a lapidar, drama constante para autores rigorosos como Graciliano Ramos.
Se dependesse tão somente deles, consumidos em sucessivas revisões, não teriam quiçá publicado um livro sequer. Por sorte seus editores deram um basta e até mesmo obras de autores pernósticos vieram a lume.
Em meio à leitura de Weber amealhei citações que reputo preciosas pela atemporalidade e que gostaria de compartilhar. “O predomínio universal da absoluta falta de escrúpulos na ocupação de interesses egoístas na obtenção do dinheiro tem sido uma característica daqueles países cujo desenvolvimento burguês capitalista, medido pelos padrões ocidentais, permaneceu atrasado”.
Como sabemos, o século XX passou sem que o Brasil vencesse a tentação da desonestidade em tudo, estrabismo que nos relegou à condição primitiva do capitalismo. Porque não damos a mínima para a máxima da ética capitalista, que é “a honestidade é a melhor política”. Não se leia nesta citação a apologia do capitalismo, até porque ser honesto não é sinônimo de ser justo.
“As pessoas imbuídas do espírito do capitalismo tendem, hoje, a ser indiferentes, se não hostis, à Igreja”. Será que isto mudou? No sentido tradicionalista, “Cada um deve sustentar a própria vida e deixar os ateus correrem atrás do lucro. Este é o sentido de todas as colocações que opinam sobre atividades seculares”. Não soa engraçado numa época em que o lucro pontifica?
Max Weber mantem-se o tempo inteiro equidistante de correntes religiosas, uma tarefa dificílima que em geral leva a bom termo, mas dá uma escorregada ao tratar da doutrina da predestinação calvinista:
“Esta doutrina, em sua extrema desumanidade, deve ter tido, acima de tudo, uma consequência para a geração que se rendeu à sua magnífica consistência: um sentimento de incrível solidão interior do indivíduo”.
Weber vai além, ao comentar que nenhum sacramento era meio de se obter a Graça, porque nenhum que não fosse escolhido por Deus poderia fazer parte deste grupo que mereceria vida eterna. A salvação através da Igreja e de seus sacramentos era impossível.
Tenho um conhecido que gosta de tecer elogios ao calvinismo por conta do sucesso material que acompanha algumas nações que o adotaram. Comodista de primeira, mundano, glutão, agora o sei ignorante acerca do que é o calvinismo, ascético e distante da mundanidade.
Segundo Weber, Lutero está mais próximo da vida religiosa que não descarta o misticismo e a emotividade, enquanto Calvino olha “todos os sentimentos e emoções puros com desconfiança”, defensor que era da ação ascética.
Não é de duvidar que sob tais considerações boa parte do universo e práticas católicos não passem de pieguice para o mais clássico calvinista. Weber lança mão de seu compatriota Goethe para dar uma vez mais o tom acerca do Calvinismo: “O homem de ação é sempre impiedoso; nenhum tem consciência, mas observação”.
Ao entrar no capítulo final de sua obra, Weber realça a ética discutida segundo a qual a posse é condenável apenas por envolver os perigos do ócio, das tentações da carne e do desvio de uma vida reta:
“Não são o ócio e o prazer, mas só a atividade que serve para aumentar a glória de Deus … A perda de tempo é pois, em princípio, o mais funesto dos pecados… A perda de tempo na vida social, em conversas ociosas, em luxos e mesmo em dormir mais que o necessário para a saúde, de seis até o máximo de oito horas, é merecedora de absoluta condenação moral”.
Como se vê, a máxima de Benjamin Franklin segundo a qual “tempo é dinheiro” se encaixa à feição no espírito capitalista, que pode até lançar mão convenientemente de São Paulo e seu “quem não trabalha não deve comer”, cuja leitura fundamentalista exorciza a própria caridade.
Quase no fim, Weber critica implicitamente os exageros e a avareza:
“A ideia do dever do homem para com suas posses, ao qual se submete como um obediente encarregado, ou mesmo como uma máquina de ganhar dinheiro, onera sua vida com seu peso desalentador”.
Não é mesmo admirável que as maiores questões para o homem não mudem com os séculos?