MUNDO NOVO

 MUNDO NOVO

J. B. Teixeira, 
jbteixeira@gpc.inf.br

Eram quatro, mas dois não resistiram às dificuldades climáticas. Os que sobraram são protegidos por uma esquadrilha de quero-queros, que decolam com rapidez e fúria. Não respeitam muros ou cercas e seu grito tem a autoridade da Criação, que os fez livres e destemidos. Não passo pelo terreno, faça chuva ou sol, dia ou noite, sem ser advertido e por mais de uma vez fui atingido de raspão. Ontem mesmo divisei os esporões em asas abertas que não estavam pra brincadeira. Ah se cuidássemos de nossos filhos como os quero-queros … Não haveria tantos orfanatos e menores abandonados, nem cinturões de miséria abraçando cidades.

Estava a caminho do sítio, admirando o gado de um lado e de outro da estrada. Lembrei do anúncio do governo argentino, tabelando o preço da carne … Solução mágica e absolutamente insana: em 1986, acusando os pecuaristas de jogarem contra o Plano Cruzado, o governo ameaçou perseguir os bois no pasto … Trata-se de um caso antológico, daqueles para emoldurar como confissão de burrice. O resultado foi óbvio: a carne sumiu. Minha primogênita tinha um ano e julguei imprescindível que sua alimentação contasse com a proteína bovina. Num sábado, muito cedo, entrei numa fila quilométrica do Bassi, uma grife paulistana de carnes. O estabelecimento anunciara que disponibilizaria o precioso alimento e muitos afluíram. Foram horas de espera, que meu zelo paterno bancou. Quando finalmente fui atendido não havia patinho, coxão duro, carne moída, músculo, coxão mole, alcatra, … Só restaram picanhas. Picanhas de búfalo, cujo preço desestimulara os que me haviam precedido.

E agora? Confesso que fiquei sem palavras. Com orçamento sempre apertado, qualquer passo adiante abriria um rombo nas finanças. Me enchi de razões e falta de juízo e disparei: quero quatro picanhas. Voltei pra casa entre contrafeito e satisfeito. O fato é que uma delas serviu para sopa, mas as demais foram saboreadas no forno. Já comi muitas picanhas boas, como as produzidas no sul do estado, lá onde o vento dobra excelentes pastagens, mas nenhuma melhor que aquelas. Recordava esta passagem quando apontou em sentido contrário uma caminhonete, com velocidade visivelmente alta, acima do recomendado numa estrada de chão, estreita, cujo acostamento, quando existe, é valeta para escoamento pluvial. Vinha levantando poeira. Puxei o carro para a direita e o imprudente passou, com intrínseca arrogância. O que passa pela cabeça de certas pessoas? A poeira foi baixando e voltei a apreciar a paisagem.

Em seu “Admirável mundo novo”, lançado há quase um século, preocupado com a questão fundamental da liberdade, Huxley foi profético em muitas coisas. Recentemente fiquei sabendo que em 1958 publicara “Regresso ao admirável mundo novo”, no qual discute suas previsões.

Cita Erich Fromm ao abordar doenças mentais e seus sintomas: “Os sintomas, como tais, não são nossos inimigos, porém, nossos amigos; onde há sintomas há conflito, e conflito indica sempre que as forças da vida, que pugnam pela harmonização e pela felicidade, ainda lutam. As vítimas de doença mental realmente arruinadas encontram-se entre os que parecem mais normais. Muitos dos que são normais, são-no porque se encontram tão bem adaptados ao nosso modo de viver, porque as suas vozes humanas ficaram reduzidas ao silêncio tão cedo em suas vidas, que nem porfiam, ou sofrem, ou exibem sintomas como o neurótico. São normais, não no que se pode denominar o sentido restrito da palavra; são normais apenas em relação a uma sociedade imensamente anormal. O seu perfeito ajustamento a esta sociedade anormal dá a proporção da sua doença mental. Estes milhões de indivíduos anormalmente normais que vivem sem aparato numa sociedade a que, se fossem seres plenamente humanos, não deveriam estar adaptados, ainda acariciam “a ilusão da individualidade”, mas de fato foram em larga escala desindividualizados. A sua conformidade continua evoluindo para algo como a uniformidade. Mas uniformidade e liberdade são contraditórias. A uniformidade e a saúde mental são igualmente incompatíveis … O homem não foi preparado para ser um autômato, e se se transforma em autômato, a base da saúde mental estará arruinada.

Nosso silêncio é trágico, nosso desânimo é um veneno, nosso consolo quanto às injustiças e nosso comportamento robótico são sintomas tristes, que devemos entender para então combater as lacunas de humanidade. Depois que a poeira baixar e nossa indignação amadurecer, podemos nos inspirar nos quero-queros e no selvagem do “Admirável mundo novo”: “Mas eu não quero conforto. Quero Deus, quero a poesia, quero a liberdade, ...”.

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