Interdependência de sistemas de memória

 Interdependência de sistemas de memória

Os resultados de uma tese de doutoramento desenvolvida no Centro de Investigação e Intervenção Social do Iscte-Instituto Universitário de Lisboa, demonstram a interdependência de dois sistemas de memória habitualmente considerados independentes.

Existem diversos sistemas de memória, entre os quais se destacam a memória semântica, dedicada a representações mais abstratas e genéricas, de factos e conceitos (por exemplo, saber o que é uma cadeira); e a memória episódica, responsável por representações contextuais e vívidas (por exemplo, saber onde almoçámos ontem)”, explica a investigadora Cristiane Souza, do Centro de Investigação e Intervenção Social (CIS-Iscte) e autora deste trabalho. Estes dois tipos de memória têm sido considerados e estudados como independentes, mas recentemente tem havido interesse em perceber a sua interdependência, o que motivou o trabalho de Cristiane.

Este trabalho resultou num total de sete artigos científicos, a maior parte dos quais já publicados em revistas científicas. A estratégia adotada ao longo da investigação consistiu em apresentar imagens de objetos, pessoas ou lugares, avaliando a precisão da memória dos participantes e, em alguns casos, quão vívidas eram essas memórias.

Numa primeira linha de investigação, avaliou-se a influência de representações semânticas nas memórias episódicas. Os participantes viam imagens de diferentes categorias (por exemplo, “mamíferos”) com itens típicos (cão) e atípicos (golfinho), e respondiam em relação ao conhecimento semântico prévio (por exemplo “Isto é um mamífero?”), ou com foco na perceção visual, independente de conhecimento prévio (“Quão complexo é o objeto?”). Após um curto intervalo, a memória dos participantes para as imagens apresentadas anteriormente era testada. Os itens típicos geraram memórias mais genéricas. Contudo, os itens atípicos conduziram a uma melhor memória, sobretudo na condição de aprendizagem categorial. Ou seja, a informação da atipicidade do item, porque não se encaixa totalmente nas memórias esquemáticas e abstratas já armazenadas, solicita também o envolvimento do sistema episódico e é por isso benéfica. A investigadora explica que, “de uma forma geral, os resultados desta investigação demonstram que a interação entre os dois tipos de memória parece ser dependente do tipo de informação a ser processada e dos sistemas de memória requeridos”.

Ainda neste enquadramento, Cristiane recorreu a grupos de pessoas com alegadas dificuldades na memória episódica, nomeadamente pessoas com perturbações do espetro do autismo e idosos. O objetivo foi testar, com recurso à mesma tarefa, se estas dificuldades comprometeriam a interação entre os dois sistemas de memória. Os resultados mostram que, comparativamente a jovens saudáveis, os dois grupos não apresentam o mesmo benefício do processamento dos itens atípicos. Notavelmente, os participantes idosos utilizaram o conhecimento abstrato acumulado (as categorias) para superar as perdas na recuperação mais detalhada das experiências, ou seja, da memória episódica.

Numa segunda linha de investigação, avaliou-se a influência das representações episódicas nas memórias semânticas. Participantes adultos, jovens e mais velhos, foram solicitados a nomear itens de classes semânticas de nomes próprios, como pessoas e lugares conhecidos, e de nomes comuns (cadeira, maçã, trotinete) com recurso também a técnicas de neuroimagem (eletroencefalografia). Os resultados, no geral, indicaram que os itens de nome próprio, sobretudo o nome de pessoas, são mais difíceis de serem recordados. Mais uma vez, os idosos criaram estratégias de recuperação baseadas no conhecimento prévio acumulado. Os dados neurofisiológicos, obtidos através de oscilações de frequência cerebral (estudo atualmente em revisão por pares), indicaram o recurso ao sistema de memória episódica numa tarefa puramente semântica, em particular para a nomeação de lugares, corroborando assim também a coexistência e intercâmbio entre os dois sistemas de memória.

Para além de contributos teóricos para modelos da memória humana, os resultados desta investigação poderão ser úteis no desenvolvimento de estratégias psicoeducativas e práticas clínicas na avaliação e reabilitação da memória.

“Existe a necessidade de uma avaliação mais precoce, diferencial e compreensiva, que inclua os diversos tipos de memórias, sobretudo na população idosa. O conhecimento detalhado destas funções permitirá o desenvolvimento de estratégias de estimulação a explorar a interação entre estas memória através dos mecanismos de compensação”.

conclui Cristiane Souza

No âmbito desta investigação foi também validada para a população portuguesa uma base de dados de imagens reais de objetos, a RealPic, e ainda uma base de dados de nomes próprios para pessoas e lugares, que poderão ser utilizadas em investigações futuras. O trabalho de doutoramento de Cristiane Souza, defendido publicamente em março de 2023, foi supervisionado por Margarida Vaz Garrido (CIS-Iscte) e Joana Costa do Carmo (Universidade Lusófona).

*Pedro Simão Mendes, Comunicação de Ciência (CIS-Iscte)

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