Entre Pimentas: coreana e brasileira


A passagem mais barata para Seul incluía parada em Abu Dhabi, uma ilha da fantasia em pleno deserto, criada no Golfo Pérsico.
Como um principado, encravado na Arábia Saudita, criado para acomodar interesses sabe-se lá de quem e de quantos. Emirados Árabes Unidos é o país, que não passa de uma demonstração da criatividade dos que detêm poder, dinheiro e petróleo.
O vôo saiu atrasado de São Paulo, o que quase me fez perder a conexão. Foi uma correria, que teve final feliz, como nas histórias de fadas, príncipes, emires e vizires.
Por falar nestes personagens dignos de contos, não resisto ao registro de uma figura local que também embarcou para Seul. Trajando calça, tinha sobre sua vestimenta um pano branco que só lhe deixava descobertos os sapatos, as mãos e parte do rosto. Este, o rosto, era a mais perfeita caricatura de um daqueles conselheiros de vizir, marcadamente maus. Barba longa e pontuda, as faces escanhoadas nas bochechas, tinha o indefectível nariz adunco e olhos de quem inveja.
Por trás, para completar o quadro histriônico, o pano elevava-se sobre sua cabeça e a contornava como os lenços que as senhoras usavam antigamente para cobrir os rolos que lhes tornavam os cabelos cacheados.
Em outras palavras, visto por trás tinha o formato feminino. Quando girava a cabeça apresentava-se como um daqueles camaradas capazes de degolar o próprio irmão com um alfanje. Coisas fantasiosas, mas o que é escrever, senão uma alegoria?
Desde que cheguei na Coréia do Sul fui acolhido com cordialidade. No dia seguinte estava em uma fábrica, a uma hora de Seul, para um treinamento de duas semanas. Tenho admirado a simplicidade das pessoas e seu profissionalismo.
Me deram sapatos de segurança e uma jaqueta da empresa, o que me tornou um igual, a ponto de me convocarem para os sucintos exercícios de alongamento no ambiente de trabalho. Faço as refeições segundo o cardápio coreano e, devo confessar, meus caros, que agora conheço o gosto de chumbo derretido.
Numa destas noites jantamos um churrasco coreano. Lá pelas tantas, numa colherada de sopa de vegetais com tofu, os condimentos eram tão ardidos que receei não suportar.
Não estou exagerando. Enquanto a boca queimava e o nariz escorria, busquei a salvação num copo de água. Fui discreto, a ponto de o anfitrião não perceber. Com a cabeça baixa, como fazem habitualmente, saboreava com rapidez sua refeição.
A coisa não foi fácil e a água pouca … Digo mais: sem consultar especialistas, posso sentenciar que, diante do que comem na Coréia, é improvável que haja necessidade de vermífugos no país …
País decantado entre nós por sua opção em investir maciçamente em educação e se transformar, em três décadas, de um país atrasado em um país que lidera a tecnologia de semicondutores no mundo, a Coréia só serve para ilustrar discursos no Brasil. Falamos, falamos e não evoluímos.
Aproveitei o jantar e fiz algumas perguntas. É claro que a amostragem não tem peso. Só escutei uma pessoa, mas gostaria de registrar o que ouvi acerca de alguns tópicos. Me disse que a educação não é uma prioridade apenas do governo, senão do próprio povo.
As melhores universidades são as públicas e as famílias gastam seu último centavo em educação.
Me contou que na década de 80 houve uma expansão financeira. Todo mundo passou a ter cartão de crédito. Este filme é velho e só é remasterizado em diversos países.
A consequência desta avalanche de crédito foi um endividamento geral, fato este que se deu também na Espanha e repetiu-se no Brasil. Quando a Coréia, em meio a grandes dificuldades, recorreu ao FMI, o povo uniu-se e doou o que tinha, em ouro e prata.
O país recuperou-se, escapou da agiotagem internacional e voltou a mostrar sua força. Concluiu dizendo que o povo coreano tem a noção de unidade. Somos um só, me disse. Pena que as vezes esquecemos, completou.
Estas informações, ainda que soltas, reforçam minha convicção de que, muito além da educação formal, o que precisamos é reforçar nossas famílias e retomar a identidade brasileira, perdida por conta das canalhices e ilusões tantas.
Precisamos resgatar a coesão que perdemos ou construir a coesão que nunca tivemos. Como disse, o cardápio coreano é agreste, mas passo bem.
Muito pior do que suportar os condimentos da culinária coreana – que no entanto não me causaram qualquer distúrbio, diga-se de passagem,- é mastigar no Brasil a demagogia mais rasteira, engolir a incompetência que corre solta e deglutir a liderança dos piores.