Dramas históricos: hipocrisia e mentira
Imagine que alguém coloque um revólver em sua têmpora. Ato contínuo, o engatilhe para persuadi-lo a assinar um contrato altamente danoso aos seus interesses.
Você sabe muito bem que os termos do documento comprometem seu futuro e o de gerações de seus descendentes. Sabe que o render-se é um ato trágico em si mesmo, mas o argumento é convincente.
Você titubeia, sua frio, mas não tem direito à dúvida. Porque conhece quem o ameaça e sabe muito bem que o dedo que pressiona aquele gatilho não hesitará se você refugar.
Esta situação não difere muito daquela que viveu a Alemanha em 1919. Acusada de ter sido a única responsável pela deflagração do primeiro conflito mundial, tinha sobre sua cabeça não apenas a espada de Dâmocles, senão toda a cutelaria dos exércitos aliados.
O Conselho dos Quatro, composto pelo inglês Lloyd George, pelo professor de Columbia e presidente norteamericano Woodrow Wilson, pelo médico, escritor e estadista francês Georges Clemenceau e pelo italiano Vittorio Orlando, depois de muitas marchas, dissenções e contramarchas, chegara aos termos finais do Tratado de Versalhes.
E a Alemanha restava só, no patíbulo.
Estavam em jogo os ideais de vingança da França, as reparações de guerra, a criação da Sociedade das Nações, a tese tão incensada quanto pisoteada da autodeterminação dos povos, um novo mapa europeu e o grande risco de que a revolução bolchevique pudesse incendiar uma Alemanha destruída e entregue à própria sorte.
Observar o mapa da Europa antes e depois da primeira guerra provoca espanto, com o surgimento de inúmeros países e alterações territoriais em vários outros preexistentes.
Eram os homens brincando de Banco Imobiliário em âmbito planetário, incendiando a segunda guerra mundial com as cinzas mal apagadas da primeira.
A arma na têmpora alemã não estava descarregada, nem sua localização constituía um blefe. O general francês Foch teria liberdade para invadir a Alemanha se o tratado não fosse subscrito.
Para tornar tudo ainda mais difícil, os dirigentes alemães que empunhariam em conjunto aquela caneta não tinham grande representatividade. Era uma encruzilhada cruel: subscrever o tratado forçaria o povo alemão a pagar reparações de guerra por décadas.
O sociólogo Max Weber fazia parte da delegação alemã nas discussões sobre o tratado e mesmo ele, homem de notável sabedoria, oscilou entre a assinatura e a resistência, responsabilizando a Rússia pelo conflito.
A despeito dos organismos internacionais, cuja existência tem como objetivo concertar a vida entre as nações, aposentando os tacapes, sabemos que a autodeterminação dos países é frequentemente atropelada pelos interesses dos mais habilitados ao combate.
A todo instante reabilita-se a lei do mais forte, ainda que folheada com a tinta da civilidade.
Assim, há uma turma poderosa que não respeita determinações da ONU e outra que invade países com os quais não faz sequer fronteira.
Isto se deu no Oriente Médio, agredido por salvadores não convocados, caso emblemático que até depõe contra certos voluntariados, como aquele que pulverizou o Iraque.
Estes invasores podem ser chamados de fundamentalistas do capitalismo? Impressiona a desfaçatez com que, hoje, os agressores admitem que a suspeita de armas de destruição em massa era fraudulenta.
Mais impressionante ainda é um certo desinteresse dos grandes veículos de comunicação em explorar o tema, deitando por terra sua isenção. Esta hipocrisia tem preço.
É claro que nenhum de nós admira o tal Estado Islâmico, cuja crueldade parece hors concours. Seria mesmo? Ou os países ocidentais cometem crimes semelhantes, ou até piores? Ou teria salvo-conduto quem toma decisões em salões ovais ou cúpulas promovidas pelos que dominam a riqueza mundial?
Não tenho detectado na imprensa internacional a menor discussão acerca da influência da questão palestina no cenário atual. Em que medida os conflitos em Israel – com um povo sufocado por controle territorial, por muralhas que cercam cidades e por um exército com poder extraordinário,- acirram o terrorismo? É matéria para uma discussão livre de hipocrisias.
Perguntei a um amigo que vive no Líbano se a paz na Síria está próxima. Respondeu que a guerra por lá tem futuro garantido porque o Ocidente ainda não entendeu o perigo da Al Qaeda.
Nunca é demais lembrar que esta organização fundamentalista nasceu para combater a invasão russa no Afeganistão, quando recebeu ajuda dos Estados Unidos.
São muitos os dramas humanos, mas muitos deles têm o combustível da hipocrisia e o cheiro diabólico da mentira.