Dia do Autor Português

 Dia do Autor Português

O Dia do Autor Português comemora-se anualmente a 22 de maio.

Neste dia todos os autores portugueses nas diferentes áreas artísticas estão de parabéns. Na sociedade atual, caracterizada pelo materialismo, o autor, um produtor de ideias, não costuma receber o crédito que merece.

Foi com o propósito de homenagear o autor português e destacar a sua importância no desenvolvimento da cultura e do bem-estar da comunidade que se criou esta data em 1982. Este dia assinala igualmente o aniversário da Sociedade Portuguesa de Autores. 

Noutra cidade, noutras serras, noutro século

A minha amiga Nelinha nasceu na capital de um Reino, que afinal deixou de ser reino, lá por alturas dos princípios do séc. XX.  Passou a ser uma república que se mantém num equilíbrio instável, aflita e a tentar encontrar rumo certo, o que se tem mostrado muito difícil de encontrar … E, apesar dos foguetes e das festas que rejubilaram com o novo rei, por acaso um republicano socialista, ao festejarem o primeiro centenário da república, a pintura dessa comemoração é sombria, as pinceladas são tímidas, hesitantes e incertas, o pintor não foi um mestre.  O reino não está a conseguir suportar o peso da sua grande História, com tantos feitos, heróis e bravuras, pois tem ainda que levar com a incomensurável carga de histórias e historinhas que a enriquecem, enaltecem e pesam na cultura do seu muito distraído povo. A pintura, que poderia ser um bonito quadro que pudéssemos admirar com glória e orgulho está infelizmente desfocada e esfumada, parecida com uma daquelas telas do pintor Noronha da Costa.

Assim, e para acrescentar às histórias da História e às lendas do reino, vou somar mais uma, a história da minha querida amiga Nelinha, nome doce e carinhoso com que a coroámos, e que viveu na sua meninice, a fase que tem peso na formação de uma personalidade, uma vida de conforto e alegrias, repletas de brincadeiras e doçuras na capital do Reino, agora republicano. A sua casa era um amplo, maravilhoso, impecavelmente organizado apartamento, nas Avenidas Novas, da cidade de Lisboa, com todas as comodidades modernas, repleta de facilitadores de vida que a ciência e as tecnologias já ofereciam aos privilegiados, numa época de esperança de um pós-guerra terrível e destruidor, a que o país, conseguira escapar por um triz, porque pode contar com um líder muito astucioso e determinado em acertar no alvo.  Naquele apartamento havia uma grande sala onde uma enorme estante cobria as paredes do tecto ao chão, e num cantinho, onde ficavam os livros mais emocionantes, aqueles que verdadeiramente interessam, porque fazem sonhar, aqueles que contam histórias fantásticas, de encantar e maravilhar, era onde Nelinha se sentava na sua pequenina poltrona de veludo verde, feita à sua medida, apesar de ter os braços um bocado esfarrapados por ser um dos pontos de interesse focal da sua gatinha Naná, era ali o sítio certo e confortável para a minha amiga descolar da realidade e levantar voos.  Nelinha adorava ler e com as suas amigas fazia concursos para ver quem lia mais livros e o mais depressa possível e no final conferir quem mais sabia e aprendia. Sempre desconfiei que a sua vertiginosa rapidez em ler se devia à grande biblioteca que havia na sua casa, com tantos livros devia ser fácil ler depressa, ou talvez ela tivesse secretamente aprendido outra forma de ler os livros, como fazem agora os comentadores de televisão que, semanalmente, apresentam uma pilha enorme de livros, que eles asseguram ter lido e nos aconselham com grande determinação. A minha amiga era tão inteligente, sagaz e esperta, que inveja não conseguir ser como ela.

O pai de Nelinha, o Senhor Juiz Conselheiro Eleutério Pranteado da Costa, era um juiz muito bravo e determinado nos seus julgamentos, de nenhumas falas nem conversas, nem tão pouco cerimónias ou cortesias, e o pouco tempo que passava em casa ficava trancado na sua organizada biblioteca a ler e a estudar os invasores processos que lhe chegavam continuamente de casos horríveis e impensáveis de crimes de corrupção, de favores, de tramas, coisas que andavam a roer a sociedade, a roer com muito maior intensidade que um qualquer caruncho furioso quando decide atacar uma estante magistralmente talhada por um marceneiro, daqueles em vias de extinção, mas com licenciatura na arte de trabalhar a madeira e diplomado numa das fundações que formam os grandes especialistas nas artes e nos ofícios.

A mãe de Nelinha, brasileira nascida no Rio de Janeiro, de seu nome, Thais Villarosa Pranteado da Costa, era a mais bonita senhora das Avenidas Novas, de fazer parar o trânsito, como se costuma dizer na gíria do vocabulário republicano com mais de um século de liberdades de expressão. Alta, loira, sempre a seguir as últimas tendências da moda de Paris, que isto de Paris era sempre o ponto de partida para as exigências de qualquer dama de grande glamour que habitasse na capital.  Thais não dava muita atenção à sua filha, pois sabia que Brilhantina a tratava melhor do que princesa ela fosse, por isso não se preocupava com nada, as coisas corriqueiras são para os outros fazerem, por isso nunca parava em casa, nem visitava a biblioteca onde o seu marido se entediava com os processos judiciais, preferia sair com as amigas, ir até Cascais no seu Carocha vermelho, tão chamativo como um coração de Viana, para  jogar à Canasta em casa das amigas e  com as amigas ir ao Cinema, às matinés e sonhar com as estrelas do firmamento.  Thais adorava cinema e sonhava, quem sabe um dia …  Que divina e linda a Debbie Reynolds, era sua fã incondicional, no filme “Serenata à Chuva”, que sonho aquele galã, James Dean em “Fúria de Viver”. Como a vida era bela, como Thais se sentia inspirada, e quem sabe … um dia … um dia quem sabe …   Thais tinha a sua agenda carregada, e  todas as quartas-feiras ia  à Baixa “lamber vitrines” inspirar-se para as suas novas e arrojadas toilettes, visitar “Paris em Lisboa”, escolher os tecidos macios e aveludados para os seus novos tailleurs, deambular pelas  retrosarias da Rua da Conceição e descobrir galões e botões, que fariam com que qualquer modelo copiado da Chanel parecesse um original, comprar um perfume ou um creme na “Au Bonheur des Dames”, onde ainda não se vendiam os cafés Nespresso, que o sensual George Clooney tão convictamente nos impõe.  Altiva, segura de si e feliz Thais desfilava descontraidamente, chamando a atenção e causando espanto e admiração, onde quer que entrasse, até podia ser na Joalharia do Carmo para comprar brincos de pérolas e quem sabe um colar a condizer, era a jóia que fazia brilhar as outras. Um dia Thais, por ser tão bonita e vistosa foi convidada a participar num concurso de cozinha, para promoção da Farinha Amparo, do Chocolate Regina, da manteiga Pastor e outras primorosas vitualhas. E Thais entrou no concurso com um bolo muito especial e espampanante, e que bolo, nunca se tinha visto nada assim, era espantoso e de fazer crescer água na boca, quem o fez e decorou não foi Thais, foi Brilhantina, mas o bolo ganhou, e o prémio Thais ganhou: Uma viagem a Paris … Thais embarcou num avião Lisboa-Paris, no Aeroporto da Portela de Sacavém com destino à cidade das luzes, lá onde tudo acontecia, a Europa, a Moda, a Cuisine Française, os Teatros, as Óperas, o Moulin Rouge … Paris onde viviam Grão Duques, príncipes e princesas, os senhores do mundo, e Thais nunca mais voltou … Dizem que foi hipnotizada por um homem alto e barbudo, com olhos cor de mel e pele cor de azeitona, ostentando no seu pulso um relógio que dá pelo nome de “Alucinação” e de braço dado com esta fantástica personagem, Thais despediu-se do palco das vaidades e partiu para as Arábias.

***

Os ares andavam toldados ali para os lados das Avenidas Novas, e quem sofria muito com isso era a minha amiguinha Nelinha. Como a sua mamã, de um dia para o outro, se escapulira, verbo que ela adorava empregar nas redacções do colégio e que as malvadas das professoras sempre lho traçavam a vermelho. Nelinha, quase nunca via o seu papá-juiz, vivia com Brilhantina, que era, por assim dizer, para não ferir as susceptibilidades do momento actual, a fada do lar, a pessoa que tratava de todas as coisas chatas de uma casa, a presença segura que mantinha a “máquina” a funcionar. E para que Nelinha pudesse ter alguma felicidade e ultrapassar a ausência da sua mamã-estrela, o seu papá-juiz um dia chegou a casa com um grande cesto repleto de pets (para quem não saiba, pets são animais, vivos de estimação), uma gata com um grande laço rosa ao pescoço e guiso de presença, um periquito, dentro de uma faustosa gaiola doirada e um peixinho vermelho dentro de um aquário redondo e azul, com pretensões a parente longínquo de um oceano. Naná, a gatinha persa, deliciava-se a destruir tudo o que fosse tapete de Arraiolos (mas também quem ia gostar de herdar um tapete desses, tão fora de moda) a esfranjar cortinas e estofos de cadeiras, enfim tudo o que desse alívio a umas unhas de felino em prisão domiciliária. Mas Naná era tão amada e protegida que ninguém lhe podia ralhar, pois uma moderna e imprescindível organização para defesa dos animais, sobretudo de pets, poria de imediato todo o infractor sem coração em grandes apuros, atrás de umas barras de ferro, caso algo de inconveniente acontecesse com a Naná ou também com o periquito Galião, que sonhava encontrar na sua brilhante e doirada gaiola uma abertura por onde pudesse fugir e explorar o mundo lá de fora,  que aquele mundo de prisioneiro já ele bem conhecia e, muito provavelmente, se houvesse sarilho com o peixe Golfinho, mesmo que saltasse para o rio Tejo, jamais os seus homónimos o aceitariam, quem sabe até lhes servisse de apetitosa “entrada”, pelo que era preciso ter muita atenção e consideração com os pets, caso contrário, as coisas podiam não correr de feição, naquele número das Avenidas Novas da cidade de Lisboa.

Com uma mãe desaparecida na sequência de um concurso com super-bolo, um pai ausente, enfiado na sua biblioteca, mergulhado em processos e mais processos, com os quais lutava e se debatia tentando julgar e condenar tanto malvado, Nelinha sofria de fartura, apesar de nunca ter provado aquelas que se vendem nas feiras, pois uma menina de bem, e da cidade, não pode comer petiscos que fazem engordar, tem que saber cuidar da sua silhueta. E era isso mesmo, sofria de fartura porque estava farta de tudo, não era uma menina alegre nem feliz, pois cansara-se das ficções dos seus tempos de criança e agora já nem existia a sua pequena poltrona de veludo verde, cuja vida certamente tinha terminado num qualquer contentor de lixo, completamente desfeita em milhões de fios com que Naná se tinha enredado e divertido.  E sofria, mas resistia, e assim foi crescendo a minha amiga, até se tornar numa mulher segura de si, muito culta,  licenciada  em teorias filosóficas, que lhe serviam de alento e  alimento para  a alma e a consolavam sempre que reflectia, em como a civilização, o conhecimento, transformam uma pessoa que só pode ser feliz quando é superiormente civilizada, mas como dizia o mau aluno, que sempre se sai com uma graçola sobre tudo e todos, que não liga a nada e muito menos a tais teorias, o que está sempre na última fila da sala de aula e que nada entende, sussurrava a troçar: – Olha que essa tua ciência,  é a tal, com a qual e sem a qual tudo fica tal e qual. O que se veio a confirmar.

***

A vida de uma pessoa da cidade é como entrar numa espécie de prisão, quando vemos as “batalhas” que aí se travam todos os dias, em que o ser humano se transforma numa espécie de autómato impensante, sem os sentimentos que caracterizam o ser humano, em que nada mais se acrescenta, pois, o homem da cidade só pensa em todos os pensamentos já pensados, só exprime expressões já exprimidas, todos intelectualmente são carneiros trilhando o mesmo trilho. A cidade é uma ilusão perversa, com sofrimentos especiais que só nela existem. A desarmonia social, o barulho dos vizinhos de cima, a indiferença dos vizinhos de baixo, os cheiros que fogem da porta ao lado e que, sem pedirem licença, empestam o ar cheiroso a alfazema «do nosso lar».   E aqui, no apartamento maravilhoso onde Nelinha cresceu e sempre viveu, ela é agora a proprietária, só existe solidão, o seu papá-juiz cansou-se de julgar os vivos e foi julgar os mortos, a gata Naná desapareceu pela porta das traseiras, para nunca mais voltar, e numa bela tarde de Primavera, Brilhantina abriu as janelas da cozinha de par em par, para arejar a casa e desentupir os maus cheiros que vinham da porta do lado, e teve um ataque de alergia tão violento que foi transportada pelo 112 para as urgências do hospital, mas a fila e a espera foram tão longas, que não resistiu e finou-se antes que algum médico lhe pudesse valer. Naquele entretanto e atrapalhações,  o periquito Golias encontrou a  portinhola da gaiola mal fechada, com a destreza do seu bico, abriu-a e aproveitou aquela oportunidade única para voar em liberdade, para todo o sempre, pelo azul do céu de Lisboa e quanto ao peixe Golfinho, que quis  seguir os voos de Golias, não teve tanta sorte, ao ensaiar o seu “voo”, terminou a sua monótona vida de milhares de infindáveis voltas sempre iguais,  naquele minúsculo simulacro de  “oceano”, estatelado no chão da cozinha.

***

A sumptuosa escadaria da entrada do prédio do luxuoso apartamento das Avenidas Novas de Lisboa, já conheceu melhores dias, agora está murcha e sem graça como aquelas flores, que um dia apareceram para festejar a liberdade, virou armada num arraial de ruidosas malas de rodinhas, de um exército de turistas sem cheta ou de nómadas digitais, que devagar, devagarinho têm vindo a ocupar todas as casas e apartamentos, construídos a pensar em famílias que os iriam habitar.  Aqueles apartamentos que um dia acolheram vidas, emoções, alegrias e sucessos, mas também tristezas, são agora paredes que se transformaram em máquinas registadoras, onde o “sinal de vida” é o som incessável de impressão de talões de débito ou crédito.  O vil capital insensível a desafiar a verdadeira harmonia social.

E, mergulhada em pensamentos pouco doces, nesta inaudita época de tecnologia, a minha amiga, também ela conquistada e dependente das informáticas de ponta e tóxicas, continua farta de tudo. Sem se dar conta disso, a leitura dos livros tornou-se numa valente chatice; desistiu de olhar para a televisão que só mostra football ou notícias sobre o crescente horror que grassa pelo planeta, que parece estar em risco de colapso; o seu smartphone nunca toca, porque tem uma avaria no som, e a minha amiga ainda não conseguiu decidir-se, sobre qual o melhor, mais recente e extraordinário modelo a adquirir; pois os resquícios de admiração pela tecnologia estão bem vivos na sua mente; descobriu como é divertido conversar num chatbot,  com alguém a quem se pode abrir o coração sem constrangimentos nem pudores e ter do outro lado uma voz amiga e disponível, que nunca se agasta com as secas que lhe dão, o amigo que compreende e  aconselha, e foi assim que a minha amiga farta de tudo e de não encontrar nada que lhe desse novos estímulos, por sugestão do seu robot amigo e preferido do chatbot, se iniciou no Farmville. Ah! como é emocionante sentar-se frente ao ecrã do seu computador, no conforto da sua sala e jogar, e o tempo passa tão agradavelmente depressa.  Farmville é agora a alegria de Nelinha, que já conseguiu construir uma quinta enorme, com tudo a que uma quinta de sucesso tem direito, estrebarias com centenas de cavalos, vacarias, queijarias, campos de flores, de couves, nabos, tomates, cenouras … tudo o que se possa imaginar, que uma fértil e bem gerida quinta de sucesso pode produzir, desde que exista um eficiente capataz, e no fim os lucros são de monta. Para se produzir em Farmville, basta o pequeno esforço que um dedo e três neurónios possam desenvolver, e a quinta cresce próspera e bela … e a trabalhar comodamente numa realidade virtual que em muito ultrapassou a realidade dura da era industrial, as tecnologias desenvolveram uma era de ilusões, onde a participação do humano está ausente para lá do mundo virtual.

Repentinamente o écran apaga-se, Nelinha tenta ver o que se passa e à sua volta está tudo off , desesperada tenta resolver o problema, e com alegria verifica que consegue voltar a restabelecer a energia eléctrica que faz bater o coração das suas máquinas, e  apressadamente corre para o computador para controlar a sua quinta Farmville, já se passaram alguns minutos e as vacas têm de ser mungidas, as searas ceifadas, a apanha das laranjas já está no limite de tempo para o fazer… mas há uma mensagem no seu ecrã, completamente preto: ERRO FATAL !

Sem computador nada funciona mais, nem a quinta, nem as conversas com o chatbot … nada … sem conseguir pensar, abre a porta do frigorífico que, felizmente, continua com o rame-rame do seu motor, e a salvação para tamanho desespero: uma taça de arroz doce, daquele que tinha sobrado das compras da véspera na Versailles, uma das poucas pastelarias da cidade com laivos de glamour parisiense! Oh que delícia, que bem que sabe, faz-me recordar a doce Brilhantina …, mas tudo são agora glórias do passado, e a sua quinta virtual, por artes mágicas, que a tecnologia não consegue explicar, foi substituir uma outra quinta Farmville que um jovem introvertido tentava desenvolver; os amigos chatbots dissolveram-se numa qualquer galáxia ou emigraram para o mais distante planeta do espaço!  Pensativa e a saborear aquele arroz doce, as papilas gustativas saltaram de alegria e simultaneamente Nelinha dá outro salto, o verdadeiro salto … e é isso, o fim das chamadas para o Uber Eats, ou para encomendar uma Pizza estaladiça e crocante, que acaba sempre por chegar mole e desolada. E com estas vicissitudes farta-se da cidade, da sua opressão condicionadora, e a sua mente desperta aspirando por uma verdadeira liberdade de escolher e de ser.  É assim, filosofando que Nelinha toma uma decisão, fechar a sua vida citadina, arrumar tudo numa caixa dentro da uma despensa, fechá-la à chave e deitar fora a chave no contentor amarelo!

Vai para Agra, ver o que se passa lá pelas tapadas, pelas casas que eram dos seus avós e que ela nem conhece, fartou-se das filosofias eruditas, o rapaz do fundo da aula bem tinha razão, os conhecimentos que nunca terminam nunca a poderiam satisfazer. Separa algumas coisas necessárias para não se perder e saber quem é, compra uma passagem para um autocarro expresso para Agra e adeus Lisboa – fica bem por aí com os teus buzinares, os teus engarrafamentos, o teu mar de latas, que não tarda nada ficam como mares e rios parados, que se transformarão em pântanos.  “Adeus cidade, que perdeste o teu glamour e vendeste a tua alma ao capital, eu quero salvar a minha … vou a caminho da Serra, vou para Agra e lá poderei enfim ser eu, a Nelinha, em toda o meu ser, em todo o meu esplendor de alegria e saber, agora eu vou ser uma parte de ti Natureza. Vou aprender a entender-te a ti Natureza, de quem fiquei toda a vida afastada, que nem os meus saudosos pets me conseguiram dar a perceber como tu eras, não eram verdadeiros seres vivos, eram pets, ainda que dentro deles batesse um coração vermelho como o da cor do Carocha da minha mãe Thais ou de um coração de Viana.”

 Nada interessa mais, agora vai dormir para esquecer, mas a decisão está tomada e será com toda a determinação que partirá para a Serra de Agra acreditando que as belezas da serra a farão esquecer a sua vida na cidade.  Mesmo que o saber, o conhecimento, a civilização lhe tenham oferecido uma armadura, será que vai ser suficiente para este impacto de mudança tão radical? A filosofia e os conhecimentos científicos e culturais coleccionados durante a sua vida serão necessários para que a minha amiga consiga ser feliz numa vida tão radicalmente oposta à qual vivera até agora?

Agra é uma lindeza e que paz, sob a janela viceja fartamente uma horta, com repolhos, feijoal, talhões de alface, gordas folhas de abóbora rastejantes. Uma eira … que diferente de tudo o que aparecia tão colorido e rápido a crescer no Farmville … como são difíceis a vida e o trabalho do campo …, mas poder abraçar uma árvore e conversar com ela e à sua sombra poder ler um livro sem precisar de ter uma biblioteca representa a ressurreição depois de tantos anos de cova…

***

Nunca mais soube da minha amiga, nunca mais tive notícias dela, porque tudo o que a ligava a este mundo moderno se perdeu, durante a sua atribulada viagem para Agra, todas as suas bagagens se sumiram nas bagageiras do autocarro, sem que ninguém desse por isso, quem sabe surripiadas por algum ovni que viesse a este planeta tentar compreender o bicho Homem que nela habita. Os primeiros momentos foram de desespero total, mas com o passar das horas, dos dias que se seguiram a este embate, tomou ainda outra decisão e esta completamente radical. Retirar-se, na verdadeira acepção da palavra e viver em profunda comunhão com a Natureza.

Mas neste mundo onde tudo está controlado lá do altíssimo posicionamento dos olhos tecnológicos que tudo vêem, controlam e que tudo relatam, soube através de diversas plataformas digitais e virtuais, e por diferentes órgãos de comunicação social, os media, o que se segue:

  • O “Jornal das Freguesias Unidas da Cidade de Lisboa”, informava numa coluna de notícias úteis e factos de interesse para a freguesia, que estava um apartamento luxuoso para venda nas Avenidas Novas, uma óptima e imperdível oportunidade para grandes investidores. Deduzi, portanto, que as tomadas de decisões radicais tinham sido concretizadas.
  • Na revista “Eva ao Espelho” a notícia era de pesar pela partida da filha da mais glamourosa lisboeta, que alguma vez pisou as calçadas portuguesas, do alto dos seus tacões agulha com 12cm, sem nunca ter torcido um tornozelo.
  • No perfil de uma influencer do Instagram, com mais de 7 milhões de seguidores, dava-se conta de alguém que estava a vender um fabuloso guarda-roupa repleto de griffes de conhecidos costureiros parisiense. Penso que Didier Ludot, de passagem por Lisboa, foi quem arrematou o guarda-roupa, dado o interesse demonstrado nas trocas de comentários com a influencer.
  • Na revista cor-de-rosa “Olá Amigas” havia uma extensa reportagem, desfasada no tempo, em que se mostravam os interiores e as vistas do maravilhoso apartamento das Avenidas Novas.
  • Numa Newsletter destinada a livreiros e bibliotecários a notícia de relevo era a da venda de um lote de milhares de livros encadernados, especificamente relacionados com o Direito, Código Civil, de Trabalho, Fiscal, etc. Até contava com uma primeira edição de “A carta” de 1826.

Epílogo

Hoje está outro dia maravilhoso de Primavera, e como as alergias passam por mim sem me importunar, antes de ir para a minha aula de bordados, sim que agora ando a fazer um trabalho repleto de passarada e outras belezas da natureza, para decorar o meu corredor que reclama alegria côr e vida, fui dar uma volta higiénica pelo parque que fica a uns 5 km de distância da minha casa, logo pelas 7 horas da manhã, já que para ir e voltar, sem contar com a caminhada que faço pela natureza citadina, o esforço é “real”! Andar de carro na cidade é assunto do passado, impossível encontrar um lugar para o estacionar, portanto o melhor mesmo é não pensar nisso e deixar a “lata” quietinha para não atrapalhar. Ora, ao chegar a casa encontrei na minha caixa do correio uma carta, e não era a de 1826, era mesmo uma longa carta e de quem? Da minha amiga Nelinha que me dizia que me preparasse para um glorioso reencontro comigo, as novidades eram de peso e a transbordar, e filósofa como sempre foi, lá me ia dando tiradas de grandes pensadores, como esta de Marguerite Yourcenar, em Memórias de Adriano, “quando todos os cálculos complicados se revelam falsos, quando os próprios filósofos não têm mais a dizer-nos, é desculpável que nos voltemos para a chilreada fortuita dos pássaros ou para o longínquo contrapeso dos astros” … mas entretanto perguntava-me se haveria, no topo do meu prédio algum terraço onde pudesse aterrar e estacionar o seu drone!

Estou ansiosa pela visita da minha amiga e já imagino como ela se vai sentir “em casa” quando passarmos pelo corredor onde já terei pendurada a grande tela bordada em cores luminosas e brilhantes repleta de pássaros, rosas, lírios, corações. A minha amiga Nelinha tão inteligente, sagaz e esperta nem vai sentir a nostalgia das suas serras, e eu vou sentir outra vez uma certa desilusão passageira em não conseguir ser como ela, mas o que estou mesmo é orgulhosa da minha grande tela de linho bordada a trazer a vida e a côr ao meu corredor!

Nota Final

Esta é a minha inspiração baseada na crítica que Eça de Queiroz faz à vida moderna, no seu póstumo Romance “A Cidade e as Serras”. O Homem foi levado a acreditar nos confortos que a tecnologia lhe trazia, que era aí que residia a base de toda a sua felicidade, quando efectivamente tudo o que é material pode ser descartado e nunca poderá substituir o estado de realização que vem da alma de cada um de nós.

Na verdade, toda a transformação digital tomou um espaço importantíssimo nas nossas vidas, e todos sabemos como estamos dependentes da Internet para tudo, de um smartphone para nos relacionarmos e comunicar, de um computador para trabalhar, ou para escrever, por exemplo, esta brincadeira, pois sem estas tecnologias, e neste caso, para mim teria sido impraticável participar neste repto que só nos foi desferido e só pode ser tratado e curado seguindo as prescrições de uma “receita literária”.

*Conchitin

Nota: Por minha vontade este texto não segue as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa,

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2 Comentários

  • Noutra Cidade, noutras Serras, noutro Século

    Fabuloso conto, com muita elegância, imaginação e criatividade.

    Parabéns à autora e ao jornal.

    • Adorei ler. Fiquei agarrado desde a primeira linha.
      Gostei de saber que a família da Nelinha era minhota.
      Essa serra (Arga/Agra) deve ser das poucas que ainda não conheço!

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