Conto: Pato-mudo

 Conto: Pato-mudo
Fátima Fonseca, Professora

Chiquinha e Branca eram da mesma idade, mas tinham nascido muito longe uma da outra e em circunstâncias muito diferentes!

Porém, algum tempo depois, começaram a viver perto uma da outra, por razões familiares e, frequentando a mesma escola e a mesma classe, tinham- se tornado grandes amigas.

Com efeito, Chiquinha nascera em Angola e fora um dos poucos bebés sobreviventes de uma aldeia incendiada e destruída junto à fronteira norte, durante a guerra.

Um oficial do Exército português, que a encontrara a chorar entre os escombros, tivera tanta pena que a trouxera nos anos 60 para Portugal e fora de pronto adoptada pela sua família e criada com todo o carinho como uma filha mais, embora o dinheiro não abundasse naquela casa, onde viviam pai, mãe, uma avó materna e dois filhos pequenos.

Branca, por seu turno, vivia na porta ao lado, não tinha irmãos, e o seu pai era irmão do oficial do Exército, mas não fora enviado para África.

A mãe dedicava-se ao comércio de joias, estava sempre fora de casa e como também o pai estava muitas vezes ausente no estrangeiro em viagens de negócios, Branca passava os dias entregue a uma empregada.

Nada lhe faltava em termos materiais, tinha tudo quanto queria, e desde pequenina se habituara  a comer só o que lhe apetecia e guloseimas a toda a hora, mas o ambiente familiar onde se sentia bem era em casa dos tios e dos primos, para onde se escapava sempre que possível… Chiquinha contudo, era educada com mais sobriedade e menos fartura, tal como os seus irmãos.

As duas primas, muito diferentes fisicamente, Branca gordinha e Chiquinha muito magrinha, partilhavam tudo, dos brinquedos às guloseimas, tinham os mesmo gostos e tinham-se tornado inseparáveis.

Na escola de bairro, pequena e familiar, que frequentavam, cedo se notou que Branca era muito boa aluna, enquanto que Chiquinha apresentava algumas dificuldades de compreensão e concentração, era muito tímida, além de gaguejar um pouco, sobretudo quando mais nervosa.

Certo dia, uma das professoras, um tanto irritada por ela nunca responder às suas perguntas até comentara: “Há aqui muitos ‘papagaios’ na  turma, sempre prontos a palrar, mas a menina mais parece um  ‘pato-mudo’, nunca diz nada…

Branca, que  queria sempre proteger Chiquinha, por baixo da carteira, às escondidas, pegou-lhe na mão carinhosamente, e passou-lhe um rebuçado de consolação, cheia de pena da prima que ficara de olhos cheios de lágrimas…

Desde então, alguns colegas mais velhos e trocistas, no recreio  chamavam-lhe ‘paatoto- mumudo’, o que a princípio muito a magoava, mas com a ajuda de Branca, da diretora da escola e a atenção dos pais adoptivos, Chiquinha ia superando as suas dificuldades de aprendizagem e de relação, ia evoluindo e sempre passava de ano, embora sem os resultados brilhantes de Branca.

O tempo ia passando, já no liceu as troças eram mais mordazes e dolorosas, e chamavam-lhes ‘Bucha e Estica’, quando viam as duas primas juntas, uma gorda e outra magra, mas, entretanto, Chiquinha ganhara mais confiança em si mesma, aprendera a defender- se e fizera novas amizades, porque se não era tão boa intelectualmente, tinha, porém, um coração de ouro e muitos a admiravam também, ao verem como ela era tão talentosa, ágil e boa em Desporto.

Aliás, cedo percebeu que era nessa área que queria fazer uma carreira profissional.

Pouco a pouco, as suas vidas foram divergindo.

Branca começou a preocupar- se com roupas, namoricos e saídas para festas, passou a dar-se com pessoas de um nível social mais elevado e foi-se afastando de Chiquinha e dos seus irmãos adoptivos.

Estudou Biologia, com excelentes resultados, estagiou no estrangeiro, dedicou muitas horas à investigação no laboratório e foi doutorar- se nos EUA; aí conheceu um colega americano, por quem se apaixonou e com quem casou, ficou a viver perto da Universidade de Princeton e seguiu uma carreira de investigação, que a enchia de orgulho.

Enquanto isso, Chiquinha, terminado o curso de Desporto, quis partir à aventura e conhecer o seu país natal, e sem toleimas, não querendo sobrecarregar a sua família adotiva, aí procurou um primeiro trabalho.

Começou por ajudar nas limpezas de um ginásio e acabou por lá ficar como ‘personal trainer’, tornando- se mais tarde, professora de Ginástica infantil.

Não casou, mas tinha muitos amigos e nos tempos livres dedicava-se a projetos de solidariedade de missionários no interior de Angola.

Estiveram mais de uma dezena de  anos sem se ver, embora se escrevessem e uma ou outra vez  se encontrassem em Portugal.

Da última vez que se tinham reencontrado, Chiquinha, que sempre sentia gratidão e saudades da sua família portuguesa,  já notara que ambas estavam muito diferentes e até parecia que a amizade de Branca esfriara…

Chiquinha também estranhara ao ver Branca tão obesa, e preocupada com a saúde da prima, com algum cuidado chamara-lhe a atenção, dizendo que era perigoso e deveria consultar o médico…

Branca, que na verdade tinha alguma vergonha de se ver tão gorda, não gostou nada que lhe tocassem no seu ponto fraco e reagiu mal.

Sem quase saber porquê, pela primeira vez na vida, instintivamente, foi agressiva e maldosa para com Chiquinha, dizendo-lhe mesmo:
Se é só isso que tens para me dizer de simpático e nem sequer me dás os parabéns pelos êxitos dos meus trabalhos de investigação na melhor Universidade americana, mais vale que continues calada como dantes, ‘paatoto- mumudo’!

Chiquinha afastou-se magoada e profundamente triste com a reação da sua prima favorita… nada respondeu e saiu da sala, despedindo-se a correr de toda a família, alegando ter voo para Angola no dia seguinte e ter uns assuntos a tratar.

Durante vários anos não mais se encontraram, nem trocaram correspondência… tinha-se erguido como que um muro de silêncio intransponível entre as duas primas.

No dia em que fazia 55 anos, Chiquinha recebeu um telefonema de Portugal que muito a inquietou!

Um dos seus irmãos adoptivos vinha dar-lhe os parabéns pela data do seu aniversário, mas também lhe vinha pedir que viesse a Portugal o mais depressa possível.

Contou-lhe então, que Branca tinha vindo a um Congresso em Portugal e quando se preparava para apresentar o seu trabalho diante de um auditório cheio de professores e investigadores de diferentes países, caíra ao subir uma pequena escada de acesso ao ambão, batera com a cabeça e estava no hospital em coma.

A situação era muito grave!

Chiquinha, muito pesarosa pelas tristes notícias, organizou a sua vida, marcou voo e dois dias depois chegava a Portugal.

Apanhou um táxi e seguiu de imediato para o hospital.

À chegada, um dos irmãos foi recebê-la e com autorização especial dos médicos, Chiquinha pôde entrar no quarto.

Passou horas sentada numa cadeira, de mão dada com Branca. Esta não se mexia, rodeada de fios, tubos e máquinas.

Em dado momento, abriu os olhos, fitou Chiquinha longamente, fez como que um ar surpreendido, correu-lhe uma lágrima pela face abaixo, quis falar… nada saiu… e logo voltou a adormecer.

Os médicos não deixaram Chiquinha ficar ali nessa noite, mas disseram-lhe que poderia voltar no dia seguinte. Assim aconteceu durante toda uma semana.

Chiquinha passava o dia junto de Branca. Cantava-lhe baixinho, fazia-lhe festas, falava-lhe das suas recordações de infância, da amizade entre elas, sempre como se Branca a pudesse ouvir… e a verdade é que, segundo os médicos, em cada dia, se iam notando lentos progressos e uma franca melhoria do estado geral!

Chiquinha era uma mulher de fé e confiava…

Duas semanas depois, certo dia, ao entardecer, Branca abriu os olhos, de repente sorriu para a prima, soltou uma lágrima, estendeu um braço e puxando levemente o rosto de Chiquinha para perto de si, como se quisesse dizer-lhe um segredo, murmurou a custo, mas numa voz audível:
Querida Chiquinha, desculpa! Muito, muito obrigada! Agora o pato-mudo sou eu…

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