Conto: O susto

 Conto: O susto
Fátima Fonseca, Professora

-‘Cilinha, Cilinha, vou morrer, chama o Jaiminho!’

-‘Ó querido, mas que  ideia! Descansa … não vais morrer nada…’

-‘Quero que chames o Jaiminho! Não ouves a morte a bater- me  à porta do quarto?’

-‘Estás a sonhar, Jeremias? O Jaime está muito longe… não vou chamá- lo a estas horas da noite… o que estás a ouvir é o teu coração a bater acelerado… o médico ainda ontem te disse que isso é só ansiedade e medo, como tem acontecido noutras noites…vá lá, põe uma pastilha debaixo da língua que isso já passa…’

… mas não passou e de madrugada, Cilinha percebeu que não era um sonho mau, era mesmo realidade e a situação era mais grave do que pensara.

Chamou então  uma ambulância que levou o marido às urgências do hospital. Era o segundo ataque de coração no espaço de três meses. 

E Cilinha, aflita, às sete da manhã telefonou ao sobrinho Jaime, pároco no norte, para vir ver o tio Jeremias que tanto desejava falar com ele.

O padre Jaime levantou- se de imediato, rapidamente se arranjou e meteu- se a caminho , calculando que seriam precisas umas três horas e meia  das terras serranas do Norte até chegar ao hospital na capital. Sabia que o tio tinha uma predileção especial por ele, apesar de não frequentar a igreja, nem querer nada com padres… e lembrava- se bem que no dia da sua ordenação, doze anos antes,  lhe pedira, meio a rir, meio a sério :

-‘ Jaiminho, quando eu estiver a morrer, vai lá ter comigo onde eu estiver e ajuda- me… olha que eu falo verdade,  se não fores tu a dar- me uma benção, não quero outro padre! ‘

Jaime acelerou o velho Volkswagen que fora do tio Jeremias e ele lhe oferecera , ainda  em bom estado, nesse dia da sua ordenação , mas o carro agora já gasto por tantos quilómetros ao serviço das almas dos seus paroquianos e de muitos outros , já não dava mais… Jaime percebia que a situação era muito grave. O tio teria de ser operado nesse mesmo dia, segundo opinião do cardiologista. 

E estrada fora, Jaime ia recordando mentalmente o filme da vida do tio : nascido e criado no Ribatejo, entre campinos e forcados, vacas, touros e cavalos, o tio, um jovem bem parecido, desembaraçado e corajoso, rapidamente abandonara os estudos e começara a trabalhar na lavoura da família e criação de cavalos.

Depois partira para Espanha e de lá para a América do Sul. Fora forcado, toureiro, cavaleiro tauromáquico, mestre de equitação… até que voltara e aos trinta anos decidira casar com a sua ex -colega de escola e namorada de sempre, a querida tia Cilinha, com quem tivera três filhas.

Quando o pai de Jaime morrera, demasiado cedo, o tio Jeremias, irmão do pai,  responsabilizara- se pela sua educação, ainda ele era um menino apenas com dez anos, mas não vira com bons olhos a sua decisão de entrar para o Seminário aos 20 anos… interrompendo o curso universitário.

‘-Que ideia a tua, rapaz! Nunca houve padres na família… tu não sabes o que estás a fazer! Não sabes nada da vida…podias acabar o curso de Economia, és tão bom aluno nas Matemáticas… fazias isso com uma perna às costas… e depois arranjavas aí uma rapariga jeitosa e casavas… entravas nos meus negócios como as tuas primas, ganhavas um bom dinheiro …agora,  um ‘padreca’ ! Que ideia a tua… isso são coisas da tua mãezinha, não é???’

Pacientemente, Jaime tentara, mais do que uma vez, explicar- lhe a história da sua vocação, mas encontrava sempre pela frente o mesmo muro de incompreensão. O tio desagradado, desviava sempre a conversa…E durante todo o tempo de seminário quase não falaram, tio e sobrinho.

Jaime sabia que o tio tinha andado nestes anos todos por caminhos transviados. Os negócios tinham-lhe corrido bem, vendia cavalos no estrangeiro, viajava bastante  para diferentes países, mas nas suas viagens, por volta  dos 50 anos,  apaixonara- se por uma modelo- porque perdia a cabeça por mulheres bonitas…- e pouco  tempo depois trocara a modelo espanhola por uma cantora brasileira… e a pobre tia Cilinha sempre serena, velando pela educação das quatro filhas, e perdoando- lhe… apesar dos desgostos que o marido lhe causava…

Os anos tinham passado, o tio envelhecera e acalmara, voltara a viver em harmonia com a tia Cilinha, as filhas tinham casado, nasceram os netos que tanta alegria lhes davam… mas Jaime preocupava- se e sempre rezava por ele; tinha- lhe grande amizade, já que ele fora como um pai adoptivo desde a sua infância… lembrava-se quando ele lhe começara a dar semanadas, o levava a ver concursos hípicos, e o ensinava a montar a cavalo e a saltar obstáculos… os livros de banda desenhada que lhe oferecia… e o seu primeiro computador… tudo o que dera às filhas, lhe dera a ele também! Tratara – o como um filho e Jaime via- o como um pai… por isso chegar a tempo de falar com o tio era vital! E Jaime acelerava…

À chegada ao hospital, a tia Cilinha e as primas abraçaram o padre Jaime, em lágrimas. A tia explicou- lhe em breves palavras a situação e levou-o até ao quarto.

Nesse momento porém, as enfermeiras entraram para levar o tio Jeremias para o bloco. Com dificuldade o tio ainda disse a Jaime:

-‘ Jaiminho, preciso da tua bênção! Já não tenho tempo para falar contigo…! Prometo que se eu escapar desta, a primeira coisa que faço é confessar-me a ti…’

Jaime abençoou-o com emoção, garantiu- lhe que ficaria  ali no hospital, rezaria  e esperaria por ele. 

‘- Se Deus quiser, tudo correrá bem, por certo! Deus é grande, tem um enorme Coração Misericordioso e hoje  é precisamente o dia do Sagrado Coração de Jesus! Agora Ele tomará conta do seu coração… Tio, está em boas mãos, vá tranquilo!’

Jaime esperou com a tia e as primas. Esperaram e rezaram. Horas depois, o cirurgião veio dizer-lhes  que a cirurgia tinha corrido bem, mas visitas só no dia seguinte…

Quando a tia foi ver o marido aos cuidados intensivos, no dia seguinte, este com voz fraca sorriu e murmurou: 

– ‘ Cilinha, minha querida, afinal não morri, graças a Deus! Vai dizer ao Jaime que preciso de falar com ele…’

– ‘ Sim, meu querido, ele está ali fora e vem já… um beijo grande! Estamos todos a ‘torcer’ por ti e  vais ficar bem! ‘

Dia do Sagrado Coração de Jesus, 16 junho 2023

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