Conto: “Mãos à obra, miúdos!” II
Talvez algum leitor gostasse de saber que mais terá acontecido na Escola do Rodrigo e no Bairro Velho na freguesia dos Castelinhos. Vou contar-vos…
Na verdade, a vida daquele Bairro começara a mudar profundamente graças à professora do Rodrigo e ao efeito em cadeia de todas as suas iniciativas na escola.
Pouco depois da conversa com os pais do Rodrigo, fora possível arranjar um rés-do-chão vazio e montar aí um polo de apoio a viciados em álcool ou droga, para encaminhar os que quisessem tratar- se e levá-los para uma instituição. E alguns quiseram!
Em seguida, um casal de médicos, moradores no Bairro Novo, com apoio de duas enfermeiras, ofereceram- se para montar um centro de enfermagem e fazer primeiras triagens num espaço cedido pela Junta de Freguesia.
Também apareceram uns casais do Bairro Novo disponíveis para criar na Escola um gabinete de apoio aos Pais que quisessem – e alguns quiseram! – conversar ao sábado sobre a melhor forma de lidar com os problemas da educação de filhos pequenos e filhos adolescentes, e esses pais dispuseram-se a fazer pequenas sessões contando casos ‘fictícios’ de crianças e jovens e estimulando a conversa entre todos para encontrarem soluções.
Em breve, montavam os primeiros cursos para Pais, e eles gostavam tanto que ao terminar, pediam mais e chamavam outros…
Sem terem de se expor, nem falar da sua situação, pois alguns tinham vergonha, pouco a pouco, os pais iam percebendo que muitos dos seus problemas tinham solução e aprendiam uns com os outros.
E as famílias melhoravam e ajudavam-se entre si. Por essa altura, alguns dos desempregados do Bairro juntaram-se e abriram, com ajuda da Junta de Freguesia, pequenos negócios mini-mercados, oficinas de pequenos arranjos… e tudo ia surgindo no Bairro Velho, em redor da Escola.
Avançando mais para o interior do Bairro, as ruas começavam a ser limpas, os bancos de madeira pintados, os passeios de novo calcetados e até os canteiros já tinham flores, pois o Presidente da Junta começara a ‘pescar’ família por família, propondo um pequeno ordenado por tarefa realizada… e quem queria aceitava e muitos quiseram!
Por toda a parte, as coisas estavam a mudar… sentia-se um certo orgulho generalizado pela nova aparência do Bairro e até a animosidade entre algumas famílias vinha desaparecendo… dois episódios foram particularmente decisivos e contribuíram para a mudança de ambiente no Bairro!
Certo dia, à entrada da escola houve um acidente, tendo uma camioneta perdido os travões e avançado sobre um passeio onde brincavam dois ciganitos, à vista das mães um pouco afastadas e distraídas à conversa.
Porém, o segurança da escola, um gigante guineense, apercebendo-se do que ia acontecer, atirou-se para a frente e empurrou os pequenitos, desviando-os a tempo e salvando-lhes as vidas mesmo no momento em que a camioneta se precipitava contra o muro da escola.
O segurança ainda ficou ferido com alguma gravidade, mas os miúdos salvaram- se, e a partir de então a comunidade cigana e a comunidade africana tornaram-se grandes amigas!
A gratidão era real! Todos tinham falado e contado uns aos outros o que tinha acontecido!
O segurança era um herói e a professora propôs lhe fizessem uma grande festa, quando pôde voltar ao trabalho!
O outro grande momento foi a festa de Natal.
A professora de Rodrigo era incansável… e as suas gargalhadas frescas eram lindas e contagiosas!
Os alunos rapidamente aprenderam canções em inglês, prepararam um auto de Natal com outras turmas, montaram um presépio na entrada do pátio da Escola, fizeram uma enorme árvore de Natal, pintaram cenários, enfeitaram e iluminaram a Escola e convidaram os pais no último dia de aulas do 1º trimestre.
Há muitos anos que não se via uma coisa assim… e a verdade é que tudo o que acontecia na Escola tinha enorme repercussão na vida de todo o Bairro…
Contudo, a professora do lenço na cabeça estava pior, e os seus queridos alunos percebiam, mas não queriam que ela ‘partisse’… só que, depois de tanto esforço, em janeiro, a professora deixou de dar aulas de inglês, embora continuasse a aparecer para as aulas de Cidadania; alguns colegas iam-na buscar e levar a casa; via-se que apesar da mesma alegria de sempre, estava a emagrecer e a perder energia.
As suas ideias, porém, continuavam a florescer e a ser implementadas por muitos, dentro e fora da escola.
Os jovens universitários seus amigos, de que ela falara ao Presidente da Junta de Freguesia, vinham agora em grupos apoiar as várias actividades, todas as semanas.
Eram eles e elas que orientavam um clube de leitura, um de culinária, a equipa de futebol, os jogos de xadrez, os concursos de História de Portugal e as competições de Matemática… e quem queria juntava- se, e muitos quiseram.
Por altura do Carnaval houve brincadeiras e desfile de máscaras até nas ruas, mas a professora esteve internada e não pôde aparecer…
Ao regressar antes da Páscoa, percebia-se que ela sentia cada vez mais a urgência de continuar aquela cadeia de bem-fazer e, sem vergonhas, um dia abriu-se com os alunos, falou-lhes num tom muito natural e sereno do seu fim próximo, e do modo como via a sua vida, da importância de levantar os olhos para o céu, e perguntar: ‘Quem sou? Donde venho? Para onde vou? Qual a minha missão nesta vida?‘ e propôs aos alunos a possibilidade de um amigo dela vir iniciar um grupo de catequese; a ideia não os entusiasmou nada, à primeira vista, nas idades em que estavam; mas a professora não desanimou e pouco depois, convidava um padre jovem que era muito animado e grande jogador de futebol e de ping- pong, e através do desporto e pelo facto de o jovem padre com ajuda dos pais do Bairro Novo ter conseguido comprar e oferecer uma mesa de ping-pong para a Escola, a amizade com os miúdos e graúdos começou a dar frutos…
Rodrigo e os colegas tinham uma enorme ternura pela professora do lenço, a sua grande amiga… sabiam que em breve a iam perder, mas cada vez percebiam melhor que ela deixava ali uma marca inesquecível, deixava rasto, e ficaria presente na memória de todos, na Escola e nos dois Bairros, em toda a freguesia dos Castelinhos!
E assim aconteceu… precisamente no último dia de aulas, em junho desse ano, a triste notícia depressa correu por todo lado…
Os dois Bairros juntaram-se de novo para homenagear a sua querida professora… o Presidente da Junta de Freguesia convidou o próprio Presidente da Câmara para estar presente e ele quis acompanhar aquela homenagem.
Todos conheciam aquela professora!
A multidão era incontável, atrás dos alunos e professores, muito comovidos e cada um com sua flor… todos acompanharam a professora até à sua última morada.
Nesse dia os alunos pensaram ser de justiça dar novo nome à sua escola para perpetuar a sua lembrança. Pediram à direção da Escola e afixaram uma enorme fotografia da professora com a legenda ‘Mãos à obra, miúdos!’, a sua frase favorita!
Os anos passaram!
O Rodrigo e os seus antigos colegas são hoje grandes homens e mulheres, excelentes pessoas e bons profissionais, muitos estudaram, outros não, alguns casaram, cada um e cada uma seguiu seu caminho e têm dado muitos frutos.
Ficaram amigos, muitos deles, embora vivendo cada um em seu sítio, alguns mesmo no estrangeiro…
É o caso do Rodrigo que vive fora, está prestes a ser pai pela primeira vez, e espera poder contar esta história aos seus filhos.
Ahhh, esquecia-me de vos dizer: o nome da professora do lenço era Rosário.