Conto: Coração de ouro
‘Menina, menina, venha depressa que a Bernarda chama-a…’ – e desligaram o telefone.
E a menina foi! Meteu-se no carro, acelerou, e lá foi ela o mais depressa que pôde, para casa da Bernarda, no novo bairro social para as bandas do aeroporto.
Foi encontrá-la muito doente. As vizinhas já tinham chamado o INEM e depois de breve conversa com elas, a menina seguiu no encalço da ambulância, chegando ao mesmo tempo ao hospital e conseguindo falar com o segurança, os maqueiros e enfermeiros; ainda pôde fazer uma festa rápida à velha Bernarda, deu-lhe um beijo de fugida na testa e prometeu-lhe que não a abandonaria… (‘fico aqui, querida, rezo por ti, não tenhas medo…’).
Sim, a menina era um pouco mais nova do que Bernarda, também já tinha a marca inconfundível dos anos, mas não podia esquecer aquela mulher extraordinária com um coração de ouro…
Conhecera-a toda a vida! E recordava-se bem de que quando casara e começara a ter filhos, a mãe tinha-lhe dito que levasse a Bernarda para sua casa para a ajudar, pelo menos durante algum tempo; não esquecia a cachupa rica que ela cozinhava como ninguém, nem esquecia como ela adormecia os seus filhos, embalando-os e cantando-lhes lindas ‘mornas’ da sua terra natal… e quando saía com o marido, médico, para algum Congresso, era sempre a Bernarda quem lá ficava em casa a cuidar de tudo e de todos. E que bem cuidava! Era uma mãe…
Bernarda nascera com grave problema cardíaco na ilha de S. Nicolau, Cabo Verde, e viera para Portugal, para ser operada ao coração, em pequenina.
Os pais, muito pobres e com outros filhos para cuidar, tinham-na confiado à família da menina, que tinha vivido em S. Nicolau e se interessara pelo problema daquela pequenita.
A operação fora delicada e demorada, o internamento prolongado e a recuperação dolorosa, mas Bernarda era uma criança invulgar e nunca se queixava de nada; antes e depois da operação sempre vivera em casa dos pais desta menina e todos gostavam muito dela!
Finalmente, quando pudera deixar o hospital, a família de acolhimento dissera-lhe: ‘agora, Bernarda, és tu a pessoa mais valiosa e mais importante cá de casa… só tu tens um coração de ouro… não o podes estragar…’
E Bernarda, na inocência da sua infância e com a humildade de alguém que por ser africana em terra de brancos, se achava diferente, começou a sentir- se muito orgulhosa do seu valor, acreditando que tinha mesmo um coração de ouro no peito e não podia deixar que o roubassem, ou estragassem… talvez por isso, ou talvez não ( quem sabe?), Bernarda era doce, bondosa, fácil no convívio e procurava ser prestável para com todos e estar atenta às necessidades de toda a gente…
E assim, com eles ficou e a eles se afeiçoou, tratando os pais da menina por ‘padrinho’ e ‘madrinha’; crescera, aprendera a ser uma perfeita dona de casa, entretanto fizera a Primária e quase completara o liceu de noite, mas nunca casara, preferindo trabalhar naquela casa, onde se sentia tratada e amada como um verdadeiro membro da família.
Tinha uma especial predileção por aquela menina, uns anos mais nova do que ela.
Chamava-lhe ‘maninha’, com frequência! Também não mais quisera voltar a S. Nicolau, sua terra natal, apesar dos convites da família e da insistência da menina e dos pais… para que fosse matar saudades e ouvir a sua conterrânea Cesária Évora,’ a rainha dos pés descalços ‘, de cujas canções tanto gostava, que sabia de cor e passava o tempo a trautear (‘🎶 Sodade, sodade…dessa nha terra São Nicolau…🎶).
Bernarda, porém, tinha muito medo dos aviões e dizia sempre que lhe podiam ‘avariar o coração de ouro’.
Mais tarde, quando a menina já era mãe de cinco filhos, certo dia, o marido foi convidado para apresentar um trabalho no Japão; a menina não queria acompanhar o marido por ser demasiado longe…, mas o marido insistira, porque seria uma oportunidade única e acabaram por ir, deixando de novo, a Bernarda com os filhos…
Contudo, lá longe, em Tóquio, no regresso do Hokuto Hospital – naquele fatídico dia em que fizera a apresentação do seu trabalho de investigação com grande sucesso – à chegada ao hotel, o marido, de repente, sentira-se muito cansado e com uma forte dor no peito, e ao entrarem no quarto caiu de maço no chão… ainda veio um médico de imediato e levaram- ao hospital, mas já nada foi possível fazer… morrera de enfarte miocárdio fulminante, ali ao lado dela, apenas com 44 anos…
Seguiram-se tempos terrivelmente difíceis… a menina que casara muito jovem, interrompendo os seus estudos, não estava sequer preparada para uma vida profissional e era preciso ganhar ânimo, coragem, forças para arregaçar mangas e sustentar a família…
Uma vez mais, Bernarda tinha sido inexcedível!
Lembrava- se bem de ela entrar no seu quarto, uma manhã, acender a luz da mesinha de cabeceira já perto do meio-dia e ajoelhar-se junto à cama, fazendo-lhe carinhosamente, uma festa no cabelo e dizendo:
– ‘A menina tem de reagir! Pense nos seus filhos pequeninos! Já aqui está na cama há muitos dias… eles precisam de si! Eu vou ajudá-la… a partir de agora não me paga nada, fico aqui de graça … e conta comigo para tudo! Tive uma grande ideia! Se a menina quisesse, podíamos começar a dar aulas de cozinha… e fazer até comida para fora e banquetes… conte comigo, que eu ajudo…!’
E assim foi…
O prior da igreja mais próxima, que a conhecia de pequena, emprestou-lhes um espaço grande com cozinha, as amigas passaram palavra e com ajuda da Bernarda, exímia cozinheira, a menina – que até então pouco ou nada sabia de culinária – começara a dar aulas a jovens, noivas e donas de casa, e pouco depois, lançavam- se as duas a fazer comida para fora e a organizar festas de casamento!
A menina, por seu turno, desenhava e fotografava bem, e assim, por essa altura teve a ideia de fazer uns livros de receitas, que também tiveram êxito imediato; a Bernarda, sempre a seu lado, orientava-a e sabia dar um toque especial a tudo o que fazia… e assim, em breve, a menina e Bernarda tinham uma empresa a sério de grande fama e sucesso…
Porém, à medida que os anos iam passando, começou a ser visível o único defeito que Bernarda tinha: gostava muito de álcool!
Escondia uma garrafinha de vinho no bolso do avental e a partir das cinco da tarde começava a beber, voltando a enchê-la, várias vezes, logo que terminava; a princípio, negava, depois chorava, recusando aceitar a verdade, mas acabou por se transformar numa evidência cada vez mais grave e num vício fatal…
Um dia, saiu porta fora, não se despediu de ninguém, deixou todos os seus pertences e um bilhetinho apenas, pedindo desculpa e dizendo que se ia tratar.
O tempo passou, chegou a ser vista a vadiar e a pedir nas ruas…. Recusava a ideia de voltar para casa da menina, com vergonha, mas a menina foi buscá-la e arranjou-lhe um quarto alugado numa casa modesta de outra família cabo-verdiana no novo bairro social.
Visitara-a já várias vezes e percebera que se aproximava o fim! Bernarda estava com uma cirrose avançada com gravíssimas consequências e definhava de dia para dia…
O médico veio procurar a menina, perguntou-lhe qual a relação familiar com a doente, porque Bernarda dizia que tinha uma parente na sala de espera. E a menina respondeu sem hesitações:
– ‘Somos irmãs. Diga-me toda a verdade, por favor!’
– ‘Ela está muito mal! Não lhe escondo nada… não sei se a conseguiremos salvar… se quiser, vá lá dentro despedir-se…’
A menina entrou no gabinete, aproximou-se e abraçou, comovida, o corpo frágil, pele e osso, de Bernarda.
Então, a custo, num último gesto, muito trémula, Bernarda tirou o fio do pescoço e entregou-lhe o pequeno coração de ouro que sempre usara e que a menina lhe tinha dado muitos anos atrás, no dia dos seus anos.
Depois, a custo pediu-lhe que rezasse por ela, porque já não sabia e tinha medo de morrer…
A menina beijou-a e de mão dada com ela, disse-lhe: ‘Querida maninha, nada receies… eu guardo este coraçãozinho, sim, mas o verdadeiro coração de ouro que aí tens dentro do peito só vai parar no colo da Nossa Mãe que te espera de braços abertos com saudades de ti, cantando uma ‘morna’… não ouves ‘Sodade, sodade, dessa nha terra S. Nicolau…’?’
E Bernarda sorriu e fechou os olhos.