Conto: A grande festa

 Conto: A grande festa
Fátima Fonseca, Professora

Era fim de verão! Os preparativos para a festa de anos da mãe- avó- bivó Mélinha tinham durado quase todo o ano.

Filhos e filhas, genros e noras, netos e netas, os 32 que eram, todos se tinham reunido várias vezes, tinham distribuído tarefas e apesar das diferenças de idade e de gosto entre eles, estavam todos empenhados ao máximo para que a festa na quinta fosse um êxito e sobretudo, para que correspondesse ao gosto da aniversariante… porque eram os seus 90 anos, uma data a assinalar de modo muito especial, já que a saúde da tão querida mãe- avó-bivó Mélinha se vinha degradando de forma bem visível nos últimos tempos.

Toda a família estava consciente de que seria muito provavelmente a sua última festa! Entre eles só diziam e pensavam ‘Deus queira que ela chegue lá…’

A longa lista de convidados, mesmo sendo fundamentalmente composta por família, incluía as poucas amigas da cidade e da aldeia ainda vivas, mais o velho pároco, os empregados e empregadas, novos e antigos, e ninguém parecia ter sido esquecido… era a maior preocupação da mãe -avó-bivó Mélinha, que queria estar a par de tudo, embora sabendo que haveria surpresas…

Queria uma Missa de ação de graças em privado só com a família próxima e já tinha tido dois dias antes. Queria uma festa simples em que toda a gente pudesse participar, ricos e pobres, da cidade e do campo, sem esquecer ninguém, e assim seria! 

De resto, todos comentavam na aldeia que há muitos anos não havia uma festa assim na quinta da Senhora! A antiga adega já estava preparada!

As decorações estavam feitas com flores campestres, o ‘catering ‘era de um restaurante da cidade mais próxima, uma comida simples e do agrado dos estômagos mais sensíveis, dos mais velhos e das crianças, e as sobremesas seriam feitas em casa pelas filhas e noras, excepto o bolo de aniversário que viria com o ‘catering’ do restaurante.

Havia luzes nas árvores e velas nas mesas, o som já estava instalado e a música ficara a cargo dos netos mais artistas, que tinham procurado encontrar músicas do tempo da avó Mélinha, bem conhecida por gostar muito de dançar na sua juventude.

Os mais pequeninos tinham feito poemas para recitarem à bisavó e desenhos para lhe oferecerem e tudo parecia estar a postos…até o tempo ameno era propício à grande festa!

Na véspera da festa, porém, alguma coisa estranha parecia estar a acontecer. 

Mélinha, que já estava na quinta havia vários dias e tinha escolhido penteado e roupa com antecedência, naquela manhã não quis levantar -se da cama,  à hora habitual, dizendo estar cansada e com dor de cabeça; a meio da manhã recusou o pequeno- almoço, não queria sequer fazer a sua higiene e quando finalmente se levantou, olhou para o vestido que iria vestir no dia seguinte e disse era horrível, como se o visse pela primeira vez, e que não vestiria nada daquilo… em seguida, embora parecesse andar com normalidade apoiada na sua bengala, a primeira coisa que fez foi pegar na lupa para ver melhor a lista de convidados e quando chegou às pessoas da sua mesa, começou a dizer que se tinham esquecido do lugar para o marido…

Todos se entreolharam espantados! Na verdade, ela é que de repente se esquecera por completo que o marido morrera há muito em S Tomé, num acidente de automóvel na roça de família que geria e onde passava grandes temporadas, quando os sete filhos eram ainda muito jovens.

Tinha sido uma tragédia na família, mas Mélinha com a sua força e fé, conseguira levantar cabeça e criar e educar os filhos o melhor que pudera.

Os filhos ficaram muito preocupados! Que haviam de fazer? A tensão arterial, que logo mediram, estava normal.

Ali perto não havia hospital, nem centro de saúde. Alguns queriam levar a mãe ao hospital, de imediato, mas ela resistiu, dizendo que estava bem e que a dor de cabeça já passara… não percebia porquê, que ideia a deles, então logo agora que tinha a sua festa de anos, iam levá-la ao hospital tão longe dali?

Não poderia faltar à sua própria festa…, entretanto, a conversa parecia toda normal, excepto a insistência no lugar para o marido em falta… falaram com um médico amigo e ele ofereceu- se para ir vê-la. Assim fez. Depois deixando a Senhora a descansar, o médico disse-lhes que ficaria mais tranquilo com umas análises, mas atendendo a que ela não queria ouvir falar em hospitais, sugeriu que poderia ter sido consequência da muita idade, talvez um pico de tensão durante a noite… o nervosismo da festa e os primeiros sinais de alguma confusão e perda de memória tão própria da idade.

Quando partiu, recomendou que não a contrariassem nas conversas, lhe dessem apenas uma canja sem sal, descanso e muita água, e prometeu que viria de novo no dia seguinte.

 A festa tinha que se fazer, claramente! – diziam os filhos- era o que a mãe-avó-bivó mais desejava, o assunto da roupa e penteado, com algum jeito havia de se solucionar, mas como resolver o problema do marido ‘ausente’??? 

Então, a mais nova dos sete irmãos teve uma ideia luminosa…explicou o plano aos irmãos e passada alguma hesitação  logo ali ficou decidido que o irmão mais velho, o Zé, tão parecido com o pai – como a mãe costumava dizer- ‘até na voz, na careca e no bigode’, iria desempenhar esse papel… a certa altura sairia da sua mesa e iria fazer de conta que era o pai, vestindo as suas roupas ainda religiosamente conservadas e usando o perfume que a mãe guardara bem fechado para ninguém usar… por certo a mãe não perceberia a diferença, pois iriam também retirar- lhe os óculos… 

No dia seguinte, desde manhã cedo a azáfama era muita! Mélinha parecia muito calma e bem-disposta, sem fazer grandes perguntas, ia esperando a festa ao fim da tarde…

À hora prevista, dois dos netos colocaram- se junto ao portão da quinta e iam explicando aos convidados que chegavam de carro ou a pé, que a avó-bivó Mélinha estava um pouco confusa, julgando que o falecido marido também viria, e por isso pediam que não estranhassem, nem comentassem, mas para que tudo corresse bem, tinham imaginado a chegada do marido que ela muito desejava que viesse à festa…

A festa começou, Mélinha levara a sua avante, recusara o vestido mais bonito e vestira a saia e blusa de todos os dias, mas com uma bonita ‘echarppe’ que os filhos lhe tinham oferecido; cumprimentara todos com alegria, embora não os reconhecesse em verdade, até porque não conseguira encontrar os óculos, e depois, quando se dirigira para a sua mesa, perguntara pelo marido. Já sentados, apareceu de repente o filho Zé, como se fosse o pai, beijou- a pedindo desculpa pelo atraso e sentou – se a seu lado. 

A festa decorria como previsto com animação e a avó estava feliz, ora falando, ora comendo um bocadinho, ora fazendo festas na mão do ‘marido’ e dizendo-lhe, muitas vezes:’ ai que saudades eu tinha de si! O meu amor está sempre jovem, não envelhece…, mas porque demorou tanto a chegar, meu amor?’

Por fim, chegou a vez dos discursos, do bolo e das músicas para dançar.

Havia um certo nervosismo no ar, mas tudo parecia estar a correr bem!

Na altura do bolo, Mélinha apagou as 90 velas com ajuda dos bisnetos enquanto todos lhe cantavam os ‘parabéns ‘! 

Quis falar, e numa voz trémula agradeceu os parabéns, as saúdes e os discursos, o trabalho dos seus mais queridos e a presença de todos…e depois, ternamente pegando na mão do ‘marido’, convidou – o para dançar a sua música favorita ‘la vie en rose’… e nos seus braços rodopiou por minutos, trauteando a famosa melodia de Edith Piaf. 

Em seguida, visivelmente cansada, foi – se sentar… pelo braço do seu querido ‘marido’, comentando para ele: ‘Que bom que tenha vindo de S. Tomé a tempo… que festa tão linda, não acha? Tudo tão bem! Dou muitas graças a Deus por este dia…  Só não percebo por que razão o nosso filho mais velho, tão nosso amigo, logo hoje está a faltar e se esqueceu dos meus anos!’

Para si... Sugerimos também...

Deixe o seu comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Subscreva a nossa newsletter