Cartas a Guiomar: A Igreja e o Papa (13)

 Cartas a Guiomar: A Igreja e o Papa (13)

Querida Guiomar,

Um dos artigos mais peculiares do credo é aquele em que afirmamos crer na Igreja. Começamos por dizer que cremos em coisas altamente misteriosas, como a Santíssima Trindade, a encarnação do Verbo e a virgindade da Mãe de Deus, e depois dizemos que também acreditamos na Igreja! Mas é preciso acreditar na Igreja? Alguém diz que acredita na Fundação Calouste Gulbenkian? Alguém diz que acredita no governo (às vezes é preciso ter muita fé, é um facto, mas isso é outra coisa)? Alguém diz que acredita na FIFA? Ninguém diz, porque não é preciso; tanto a Fundação Gulbenkian, como o governo, como a FIFA são instituições conhecidas, públicas, compostas por determinadas pessoas, que funcionam em edifícios… Então e a Igreja? A Igreja não é também uma instituição pública, composta por pessoas, que funciona em edifícios? Bem, até certo ponto, sim; mas só até certo ponto. Porque a Igreja é muito mais do que isso; a Igreja é um mistério – e é por isso que é preciso ter fé.

A Igreja foi fundada por Cristo; tem origem no Pai, tem Cristo como cabeça e tem o Espírito Santo como alma. O Papa não é o dono da Igreja; o Dono da Igreja é Cristo. O Papa é apenas o representante de Cristo, o vice-Cristo, o doce Cristo na terra, como lhe chamava Santa Catarina de Sena. É por isso que o Papa não pode mudar a doutrina, uma vírgula que seja: porque a doutrina não lhe pertence, é de Cristo. A Igreja não é do Papa, o Papa é que é da Igreja (e, por maioria de razão, os bispos, os sacerdotes e nós).

Nós não somos uma agremiação desportiva, nem um partido político, nem uma instituição cultural. Não somos sequer uma grande organização de educação e de beneficência, o que já não seria mau. Nós somos o corpo de Cristo, unidos a Ele e a todos os outros membros da Igreja por laços indissolúveis, porque marcados com o selo indelével da vontade divina e do sangue de Jesus. Não é brincadeira nenhuma!

A doutrina católica não é decidida por votos. A Igreja não é uma sociedade democrática; é uma sociedade hierárquica e carismática, o que quer dizer que tem uma origem divina. Tudo aquilo que é apresentado aos católicos como matéria de fé foi revelado por Deus – e é por isso que não pode mudar. A nossa fé é uma descrição da realidade, feita pelo seu Autor.

Fora da Igreja não há salvação. Parece uma afirmação extremamente arrogante, mas não é; não há salvação fora da Igreja porque Deus assim quis, e marcou essa vontade nada menos do que com a crucifixão do Seu Filho único. É Deus que nos salva, portanto só Ele pode estabelecer as condições para que tal aconteça; e Deus estabeleceu que a Igreja preservasse e administrasse os meios da salvação de todos os homens. Isto não quer dizer que as pessoas que se encontram materialmente fora da Igreja (os não baptizados) não possam efectivamente salvar-se, porque podem; mas quer dizer que também essas pessoas, tal como os católicos, se salvam por via dos meios confiados por Deus à Sua Igreja. A Igreja não pretende impor coisa nenhuma (nem pode, porque só se salva quem quer salvar-se); mas não pode nunca deixar de proclamar que, por vontade expressa de Deus, tem à sua disposição e está interessada em facultar os meios da salvação. E é sua obrigação estrita fazê-los chegar e facultá-los a todos. A Igreja existe para servir a humanidade; o Papa é chamado – e é de facto – o servo dos servos de Deus.

Então, quem é que constitui a Igreja? Se fores consultar as estatísticas da religião no mundo, verás que a Igreja Católica conta actualmente com cerca de 1,2 mil milhões de fiéis (mais milhão, menos milhão), ou seja, aproximadamente 17% da população mundial. É um número razoável; mas, comparado com a realidade, é um número ridiculamente pequeno. Na verdade, a Igreja é constituída por Cristo e por todos os baptizados de todos os tempos, mais aqueles que não se baptizaram por não terem conhecido a verdadeira fé mas que se teriam baptizado se a tivessem conhecido, mais todos os justos que viveram antes de Cristo – ou seja, é uma quantidade interminável de gente, uma multidão que ninguém pode contar, como diz o Livro do Apocalipse. Comerciantes e empregados de escritório, grandes intelectuais, escravos, pedintes e reis, apóstolos, pregadores e confessores da fé, brancos, negros e amarelos, e índios, e realizadores de cinema e exploradores dos pólos, marinheiros das naus e ex-feiticeiros tribais, professores e jogadores de futebol, miúdos que trabalham em minas e outros que vivem em grutas, monges do século XII e pintores do século XVII, escudeiros florentinos, físicos japoneses, taxistas filipinos e músicos brasileiros – há de tudo, nesta Igreja de Deus. E mártires, um grande número de mártires, graças a cuja coragem indómita, a cujo amor submisso, a fé chegou até nós; mártires que continuam, ainda hoje, a dar a vida por Cristo, e continuarão provavelmente até ao fim dos tempos.

Sim, porque a Igreja nunca acabará. Sabemo-lo porque o próprio Cristo no-lo garantiu, e Ele não pode enganar-Se nem enganar-nos. A Igreja durará até ao fim do mundo (com mais milhão, menos milhão de católicos aqui na terra), e continuará depois da deflagração final, com todos os bem-aventurados no céu.

De facto, a Igreja é constituída por três grupos de pessoas: os que estão ainda na terra, a chamada Igreja militante, porque é a que está a dar a cara e a combater pela salvação de todos neste mundo; a Igreja padecente, que é constituída pelas almas do purgatório; e a Igreja triunfante, que são todas as almas que já se encontram no céu a gozar a visão de Deus. É muita gente!

A Igreja caracteriza-se por quatro notas distintivas: é una, santa, católica e apostólica. É una, com unidade de doutrina, de sacramentos e de regime (sob a autoridade de um único pastor, o papa), porque tem como origem e modelo a unidade divina. É santa, porque é de Deus e Deus é santo, porque só Ela dispõe de todos os meios para a santificação das almas, e porque os seus membros são chamados a ser santos. É católica porque é universal, ou seja, porque se destina a todos os povos de todos os tempos. É apostólica, porque tem a sua origem e o seu fundamento visível nos doze apóstolos de Cristo, por cujos sucessores (os bispos) é governada até ao fim dos tempos.

Na Igreja, todos estamos unidos uns aos outros, pela chamada comunhão dos santos. A comunhão dos santos é uma verdade da nossa fé, que indica duas coisas: que todos participamos nas coisas santas (a fé, os sacramentos e os dons espirituais), e que temos entre nós uma unidade misteriosa, que passa (evidentemente) pelo Coração de Cristo. Pela comunhão dos santos, estamos todos ligados uns aos outros, de tal maneira que o que cada um de nós faz se repercute em toda a Igreja: quando um baptizado comete um pecado, a Igreja fica mais pobre em caridade, e quando um baptizado faz um acto de amor, a Igreja fica mais rica. Nenhum de nós está sozinho, pelo que temos a responsabilidade de nos esforçarmos diariamente por ser mais santos, para ajudar os outros católicos a sê-lo também. É também por isso que, como diziam os nossos irmãos dos primeiros tempos – aqueles que, quando se levantavam de manhã, nunca sabiam se era nesse dia que iam servir de alimento aos leões dos circos romanos –, o sangue dos mártires é semente de cristãos; longe de ser uma derrota, o martírio de um cristão atrai graças sobre os outros cristãos, dá aos outros cristãos mais forças para serem fiéis à sua fé.

Não podemos aderir a Cristo sem aderir à Igreja. De vez em quando, ouvimos uma ou outra pessoa dizer: eu gosto imenso de Jesus, mas não gosto nada da Igreja. Ora, isso é um disparate. Quem gosta de Cristo, tem de gostar das obras de Cristo. Nosso Senhor podia muito bem ter querido que nós nos relacionássemos com Ele sem ser através da Igreja; seria muito pouco humano, porque já se sabe que nós somos seres gregários, mas podia ter sido assim. Acontece que não foi. Nosso Senhor fundou explícita e directamente a Igreja, quis que nos uníssemos a Ele através da Igreja. Cristo e a Igreja são uma mesma realidade, porque a Igreja é o corpo de Cristo e Cristo é a Cabeça da Igreja: não podemos ter Um sem a Outra.

Por outro lado, nós amamos a Igreja com os seus erros, até porque nós fazemos parte dos erros da Igreja; cada baptizado que peca faz parte dos erros da Igreja. O que não significa dizer que os erros públicos e históricos da Igreja foram, nem por sombras, tantos como apregoam os seus inimigos, ou que as suas virtudes não sejam muitas mais do que aquelas que vêem os seus adversários (mas isso fica para outro livro). Acontece que, mesmo que a Inquisição tivesse matado milhões de bruxas e perseguido 425 cientistas, que os Cruzados tivessem trucidado milhões de muçulmanos, que os descobridores tivessem eliminado culturas fantásticas e cheias de respeito pelas pessoas – e nada disto aconteceu, evidentemente –, a Igreja continuava a ser o que é: o meio instituído por Deus, na Pessoa de Cristo, para proceder à salvação dos homens; e nós continuávamos a querer pertencer à Igreja, porque desejamos ardentemente salvar a nossa alma. Se nós abandonássemos a Igreja por causa das acções dos homens, queria dizer que estávamos na Igreja por causa das acções dos homens; ora, isso seria um erro crasso, porque os homens não nos podem salvar. Nós estamos na Igreja porque ela é de Deus (o que não tira nem uma migalha de gravidade aos pecados efectivamente cometidos, que nos envergonham e nos fazem sofrer muito mais do que aos de fora e que são um apelo à nossa penitência, como dizia recentemente o Papa).

O mesmo se aplica ao Santo Padre. Temos a sorte de ter contado, ao longo da história da Igreja, como uma série de chefes máximos absolutamente brilhantes, uns pela coragem, outros pela bondade, outros pelo intelecto, muitos pelas três coisas juntas (e nos últimos anos, então, nem se fala!). Mas também é verdade que a Igreja conheceu alguns (alguns, muito menos do que se apregoa) que não foram flor que se cheirasse. Mas o mais bizarro não é que os papas fossem malandros, que os houve (como aliás seria de esperar, sendo a natureza humana o que é); o mais bizarro é que nunca tivessem querido alterar a Igreja, adequando-a às suas malandrices (e isso é que não seria tanto de esperar, sendo a natureza humana o que é). Houve papas que tiveram amantes; mas nunca nenhum papa disse: a partir de agora, não é pecado ter amantes. Houve papas que estrafegaram os inimigos políticos; mas nunca nenhum papa disse: a partir de agora, não é pecado estrafegar os inimigos políticos.

É por este motivo – porque eles representam Cristo e não se representam a si próprios, nem representam partidos, facções, teorias, ou qualquer outra realidade meramente humana – que nós amamos o papa, seja ele quem for. Seja branco, amarelo ou vermelho, japonês, americano ou alemão (ou mesmo italiano!), nós amamos o papa sem condições. Até podemos antipatizar com ele por qualquer motivo, mas isso não nos impede de o amarmos sem condições.

E ouvimos o que ele diz, porque é a voz de Deus. Na verdade, quando proclama solenemente doutrinas de fé ou de moral, o papa é infalível! Exactamente: infalível; não se pode enganar, porque o Espírito Santo não lho permite. Mas é só em matérias de fé e de moral. As opiniões do papa sobre literatura e futebol não são infalíveis; nem sequer são infalíveis, por exemplo, as opiniões dos papas sobre política internacional – embora a essas nos convenha estar mais atentos do que às pontifícias opiniões sobre futebol. De todas estas podemos discordar. Mas, quando o Papa e os bispos a ele unidos proclamam uma verdade de fé (quando falam ex cathedra), aquilo não é a opinião de ninguém – é a verdade, e portanto temos de a aceitar integralmente.

E agora, não te esqueças de dizer uma pequena oração pela Igreja e o Papa.

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