ABUELO, Vovô, Avô
Catalão, daqueles que mesmo não sendo muito católicos se orgulham da Sagrada Família, de Gaudi, e do Mosteiro de Montserrat, Vovô veio ao Brasil. Viuvara algum tempo antes e logo acedeu ao convite do filho, que residia em São Paulo.
Casado com Antonia, Miguel era tido na roda do condomínio como um tipo bonzinho, mas chato. Porque alongava-se em minúcias, como quando torrava a paciência de seu ouvinte com cenas do trânsito da capital paulista.
Na adolescência conheci a dança da vassoura. Quem a portasse tratava de separar um casal dançante ao entregá-la para alguém do mesmo sexo. Sob tal jogo, possivelmente Miguel morreria com a vassoura na mão. Mas como dizia minha vó, “sempre há um chinelo velho para um pé torto”. Assim, desposou Antonia, de porte avantajado, com uma risada que imitava papai noel e uma basta cabeleira.
Perto de completar oitenta anos, usando uma bengala, Vovô arrumou uma namorada. Num sábado a convidou para almoçar. Em São Paulo os sábados são apanágio de feijoada. Vovô esbaldou-se, do pão com manteiga de entrada à caipirinha, do aipim frito à couve, passando pelo paio e pelas costelinhas de porco. Arrematou com um doce de coco com abóbora e um café passado.
Depois convidou a namorada para uma breve caminhada. Tomaram assento num banco de uma praça frontal ao restaurante. Sem que houvesse tempo para reações, levou a mão ao peito, amarrotou o semblante com uma máscara de dor e tombou. Nunca soube muito bem quem fora Getúlio, mas deu, naquela praça de bairro, o primeiro passo para a eternidade para entrar na galeria histórica dos Oviedo.
Aquela família de Oviedos não tivera tempo, nem intenção, de preparar um jazigo no Brasil, afinal não pretendiam abdicar do retorno à Espanha. Vovô subvertera os planos e assim decidiram pelo meio mais em conta. Vovô foi cremado.
Suas cinzas foram colocadas num frasco de alabastro, que ficou exposto na sala do apartamento. Supersticiosa e curiosamente aficionada por filmes de terror, Antonia desgostava daquele troféu mortuário na sala, mas não havia lugar melhor. Nos quartos, jamais! A urna com os restos de Vovô ficava às costas do sofá em que Antonia alojava seu corpanzil para assistir Bela Lugosi, Boris Karloff, Peter Cushing, Vincent Price, Christopher Lee, Anthony Perkins e seus continuadores.
Certa noite, os demais no terceiro sono, Antonia estava concentrada num daqueles filmes em que a música recrudesce, o escuro, as sombras e portas entreabertas sugerem que a surpresa está madura, mas será colhida quando menos se espera. No clímax, sentiu que uma mão pressionara seu ombro. Era Vovô! Deu um salto, o que para seu peso não era façanha pouca. Acendeu a luz, apagou a televisão e acordou Miguel. Pretextou uma dor de cabeça para tirá-lo da cama, mas o que desejava mesmo era apenas sentir-se acompanhada.
Na manhã seguinte tomou a decisão: levaria Vovô no carro, no porta-malas, pra cima e pra baixo, enquanto os restos não tivessem melhor destino. E assim se deu por semanas, até que Miguel declarasse, após mal sucedida tentativa de dissuadir Antonia de seus medos, que aquilo era um desrespeito para com o velho catalão. Antonia rezingou, mas admitiu que o carro não era mesmo um lugar digno. Vovô voltou à prateleira. De onde não deveria ter saído. Semanas depois a faxineira, afastando os objetos para limpar a prateleira, deixou escapar entre os dedos a urna do Vovô, que espatifou-se no piso de mármore. E agora? O que dirá Dona Antonia? O vaso com tampa era tão bonito … Bem, direi a ela que desconte de meu pagamento. Menos mal que só tinha cinzas. Preocupada em mitigar a cena, catou os cacos, tantos que não seria viável colá-los. E aspirou as cinzas