A solidão dos moribundos

Retornávamos do litoral quando soubemos que falecera uma pessoa da família. Por sorte estava sendo velada no meio do caminho e lá comparecemos.
Após as condolências formais pedi licença e me pus a rezar diante do esquife.
Tinha idade avançada, viveu sem maiores dificuldades materiais, viajou bastante e portanto, numa retrospectiva apressada, parece ter tido uma vida e tanto. Não foi bem assim.
Viuvou antes dos sessenta, perdeu uma filha bem sucedida que contraiu doença incurável e tombou por volta dos trinta.
Pensava nisto enquanto observava sua aparência. Submetidos aos cuidados de empresas especializadas os mortos assumem ares de boneco de cera. Nem mesmo o melhor deles, porém, seria apropriado para um museu Tussaud porquanto não transparecem o sopro da vida. Inevitável relembrar uma frase, de cabeça mais ou menos assim: “Se quereis saber o que é a alma, olhai um corpo sem ela”. Acho que é do Padre Vieira.
Aliás, não sabia que Marie Tussaud, nascida Grosholtz em Strasburg, aprendeu e aperfeiçoou sua técnica fazendo máscaras mortuárias de guilhotinados, como as de Luís XVI e Maria Antonieta, vítimas da invenção do médico Guilhotin para uma morte indolor. Duas estátuas originais ainda restam: uma de si mesma, já velha, e outra de um dos próceres do Terror, Robespierre.
Como a morte é inevitável, por certo a maioria a encomendaria indolor. Quem sabe dormindo. Ou como desenlace de um mal súbito. E pediria à morte que não tenha pressa em cumprir sua missão.
Depois de rezar, conversei com um dos filhos, dono de boa prosa, notória inteligência, faiscada por um tom irônico quase permanente. Falávamos sobre o ritual e não economizei elogios ao desvelo que sabidamente dedicou à mãe que partira. Sem querer, quebrei o formalismo que buscava manter, na vizinhança de seus familiares, e ele chorou como choram os filhos.
Comentou sobre a higienização da morte, quase na linha da ficção huxleyana do capolavoro “Admirável mundo novo”, onde “cada um pertencia a todos”. Nesta distopia a morte é algo perto da felicidade e as crianças cantam com alegria quando visitam moribundos ou mesmo o necrotério.
O selvagem, personagem que nos representa na trama, não entende tal comportamento. Porque a morte, que colhe a todos, democrática como nada mais no universo, é triste e escura.
Enquanto conversávamos, a três metros da falecida, pensei no momento de prestarmos contas a Deus, quando nossos arrependimentos, que de fato mereçam o nome, poderão mitigar nossas penas. No prefácio da edição que li, Huxley afirma, por outro lado, que
“O remorso crônico, e com isto todos os moralistas estão de acordo, é um sentimento bastante indesejável. Se considerais ter agido mal, arrependei-vos, corrigi os vossos erros na medida do possível e tentai conduzir-vos melhor na próxima vez. E não vos entregueis, sob nenhum pretexto, à meditação melancólica das vossas faltas. Rebolar no lodo não é, com certeza, a melhor maneira de alguém se lavar”.
Refeito da tristeza mais manifesta, o filho enlutado, que tomou conta de sua mãe por longos anos, me recomendou a obra “A solidão dos moribundos”, do alemão Norbert Elias, que leria poucos dias depois.
A despeito do aparente ateísmo do autor, o livro tem um desfile de ideias interessantes:
“Hoje as coisas são diferentes. Nunca antes na história da humanidade foram os moribundos afastados de maneira tão asséptica para os bastidores da vida social; nunca antes os cadáveres humanos foram enviados de maneira tão inodora e com tal perfeição técnica do leito de morte à sepultura”.
Em meio a sugestões de que a crença na vida eterna não passa de uma fantasia, que adotamos para contornar a falta de sentido da existência, Norbert Elias não economiza seu espírito atilado:
“Rituais religiosos de morte podem provocar nos crentes sentimentos de que as pessoas estão pessoalmente preocupadas com eles, o que é sem dúvida a função real desses rituais. Fora deles, morrer é no presente uma situação amorfa, uma área vazia no mapa social. Os rituais seculares foram esvaziados de sentimento e significado; as formas seculares tradicionais de expressão são pouco convincentes.
Os tabus proíbem a excessiva demonstração de sentimentos fortes, embora eles possam acontecer. E a tradicional aura de mistério que cerca a morte, com o que permanece dos gestos mágicos – abrir as janelas, parar os relógios,- torna a morte menos tratável como problema humano e social que as pessoas devem resolver entre si e para si. No presente, aqueles que são próximos dos moribundos muitas vezes não têm capacidade de apoiá-los e confortá-los com a prova de sua afeição e ternura.
Acham difícil apertar a mão de um moribundo ou acariciá-lo, proporcionar-lhe uma sensação de proteção e pertencimento, ainda. O crescente tabu da civilização em relação à expressão de sentimentos espontâneos e fortes trava suas línguas e mãos.
E os viventes podem, de maneira semiconsciente, sentir que a morte é contagiosa e ameaçadora; afastam-se involuntariamente dos moribundos. Mas, para os íntimos que se vão, um gesto de afeição é talvez a maior ajuda, ao lado do alívio da dor física, que os que ficam podem proporcionar”.
Me despedi dos familiares. Salvo engano, a maioria deles tomada do enfado pelo ritual, de resto prestigiado por pouca gente, num domingo estival, a contar os minutos para que tudo acabasse.
O afastamento prossegue nos cemitérios, menos e menos visitados. A manutenção das sepulturas é cada vez mais precária, quando não colocada sob os cuidados de mãos remuneradas. Isto se a cremação não for a escolha. Os mortos então não ficam solitários. Simplesmente desaparecem.