A república esquecida

 A república esquecida
J. B. Teixeira – Jornalista

A primeira redução guarani, Nossa Senhora do Loreto, foi fundada em 1610 pelos padres italianos Simon Maceta e José Cataldino às margens do rio Piraga,  ao norte do rio Iguaçu, no Brasil atual.

Os sacerdotes mencionados mal conheciam a linguagem guarani e passaram por dificuldades extremas.

Abriram, porém, com heroísmo e fé imorredoura a picada para um dos mais extraordinários empreendimentos sociológicos da história universal.

A edificação das reduções foi catalisada pelo verdadeiro pavor que os índios tinham dos espanhóis. Nas reduções estavam frágil mas implicitamente protegidos. Fora delas restava a escravidão pelo colonizador.

Na prática, porém, não há proteção sem armas, o que permitiu ataques de todos os lados: dos espanhóis, das tribos inimigas, como os tupis, e mesmo dos portugueses, ou mamelucos, ou paulistas.

Estas agressões eram patrocinadas ou toleradas pelo projeto colonial, afinal de contas as reduções eram em essência algo terrível a combater: o berço de homens livres. Para quem gosta de criticar algumas ações na história, mas não tem maior conhecimento a respeito, sugiro a leitura do livro “A República dos Guaranis”, de Clovis Lugon.

Utopia é palavra de origem grega e significa “em lugar nenhum”, ou seja, traduz o inalcançável, o ideal inatingível.

Quando Thomas More escreveu seu livro, em 1516, portanto quase um século antes da primeira redução guarani, situou a ilha Utopia na América, prenunciando uma sociedade diversa e acima daquela em que vivia.

A América, terra recém descoberta, era o manancial de esperança para um mundo sempre prenhe de desencantos. Duas eram as ideias centrais da ficção: a inexistência de propriedade privada e a submissão dos interesses individuais às necessidades coletivas.

More inspirou-se na República de Platão para, sem sabê-lo, profetizar o que nasceria no nosso cone sul.

Encilhar interesses individuais e combater as desigualdades que se originam na propriedade eram o núcleo humano das ideias de Utopia e é razoável afirmar que o autor não criticava as ideias medievais senão o próprio capitalismo, baseado na acumulação, cujos primórdios já entrevia na Inglaterra.

More desempenhou vários papeis, de diplomata a escritor, de homem de leis a chanceler de Henrique VIII, mas foi sobretudo um destes homens raros que passam como meteoros no céu da história e deixam um rastro de idealismo.

Em Utopia “A educação da infância e da juventude é confiada ao sacerdote, para quem os primeiros cuidados são para o ensino da moral e da virtude de preferência ao das ciências e das letras”.

Alguns trechos da obra revelam seu espírito:

Os ricos diminuem cada dia alguma coisa no salário dos pobres, não só por meio de manobras fraudulentas, mas ainda decretando leis com tal fim. Recompensar tão mal aqueles que mais merecem da república, parece-nos à primeira vista uma evidente injustiça; mas os ricos fazem desta monstruosidade um direito, sancionando-o em leis.

É por isto que, quando considero e observo as repúblicas mais florescentes hoje, não vejo, Deus me perdoe, senão uma conspiração de ricos a gerir do melhor modo os seus negócios sob o rótulo e o título pomposos de república.”

Quando Henrique VIII proclamou-se chefe da Igreja na Inglaterra, More se opôs, porque sabia para onde as coisas caminhavam no universo de reformas. Ao não aprovar o casamento do soberano com Ana Bolena, More encaminhou seu martírio. Foi decapitado na Torre de Londres e sua cabeça exposta por um mês.

A Torre de Londres, curiosamente, também testemunharia, menos de um ano depois, a decapitação da própria Ana Bolena.

Na América do Sul as reduções jesuíticas seriam perseguidas até sua extinção. Ainda hoje são cultuadas por nossa gente, com certa timidez ideológica, entretanto. Porque considerá-las como feito maior da humanidade implica reconhecer nos Jesuítas um mérito extraordinário e, na alma guarani, a semente que nos falta para enfrentarmos os colonizadores que nunca nos deixaram.

Enfrentar o vazio do materialismo e a sanha dos ambiciosos é jornada sempre inglória, mas vale uma vida.

Pombal expulsou os Jesuítas do Brasil e da corte em 1757, acusando-os de “rebeldes, traidores, adversários e agressores, contra a paz pública”.

O mundo afortunadamente mal lembra quem foi Pombal. A obra dos Jesuítas pela educação não tem paralelo e sua decadência num mundo laico coincide com o enorme empobrecimento moral da humanidade.

Thomas More foi canonizado em 1935 por Pio XI como modelo de fidelidade à Igreja e à própria consciência.

Grandes exemplos são chama que não se apaga e ainda hoje pode-se escutar o que nos dizem uma cabeça decapitada e as ruínas de uma civilização.

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